Total de visualizações de página

quarta-feira, 21 de setembro de 2011

Rota para Si

                                    Intervenção na Imagem- Arte Digital  de Valéria A. Cerqueira



                       A moça seguiu para a rodoviária com uma dor de partida. Dor apertando-lhe os olhos. Pesavam-lhe tanto que não podia suportar lágrimas novas... Enfim elas se perderam desviando-se pelo nariz, apertado no mínimo lenço. O destino ia se inscrevendo sem que ela pudesse saber por onde. Parecia ser mesmo um ano de lágrimas e chuvas afogando-a. Ela era uma mulher que chamava atenção pelo que vestia, pela cor dos cabelos de indefinidos caramelados, como se pudessem ter um aroma de chocolate e cravo. Podia-se constatar, caso alguém se sentasse perto dela, que era assim mesmo o seu perfume. Atraía inevitavelmente, para que a vissem pelo tanto de acetinado e natural que tinha no rosto maquiado, com óculos escuros desviando a direção do olhar oblíquo e a própria tristeza. Também ela era tragada involuntariamente pela renovadora investida da alma, no ímã de gente tão desconhecida e simples. O ônibus oscilava entre gramas, poças d’água e viscosa lama, sacolejando pessoas com cor de terra, cheiro de capim e fumo adocicado. Cheiro muito bom e limpo.
                    A estrada de barro escrevia a distância do lugar, pelo que tracejava nos cafundós, em casinhas de pau-a-pique e cruzes de papel crepom colorido marcando os domínios cristãos. Todos ali, tementes a Deus, porque nasceram pelo batismo e foram criados para viver como manda a amada Igreja; assim persignavam-se pedindo a tutela do Nosso Senhor Jesus Cristo, contra os desmandos do diabo. Mas, nem por isso deixavam de ser felizes com o que tinham de bom para pecar nos finais de semana e, se pouco houvesse, mais fácil para viver, sem peso para carregar nos sábados. Mas tem que ter tempo e vontade para não se esquecer da missa domingueira.
                    De segunda a sexta o dia podia amanhecer muito bem antes da hora que não fazia diferença carregá-lo. Mas final de semana eram levezas de fretes para aquelas bandas de casa de dança, porque o bom era moer as costelas nas danças e nas coxas delas. Nos outros dias, era obrigação mesmo estar de pé às cinco, por conta do trabalho e da natureza que sempre soube o que fazer; era mais pontual e condescendente seguindo o canto dos galos de três em três horas do que relógios e sinos estridentes, até o sol avisar com ruídos do dia a insensatez das aves e homens insones. Nunca soube em que horas os galos dormem... E se dormem... Nunca soube “por quem os sinos dobram.” Ao menos naquela cidade, bem pouco tempo atrás...
                    A alegria recente ao vislumbrar o dia é leve e não ocupa espaço. E, o que não falta é espaço dentro do ônibus que carrega uns, descarrega outros, aqui e ali, empilhados na estrada, para todo lugar onde há filho de Deus esperando debaixo de sol ou de chuva. Todo dia assim, motorista e trocador mensageiros, entregando embrulhos, buscando encomenda, arrastando a parteira lá pelas bandas do córrego, onde tem criança esperando para nascer. Antiguidades e beleza de transporte do interior, em total comodidade para meu coração, tornando as emoções práticas e mais fáceis de suportar. Repetem trajetos, como remotas tropas de bandeirantes, transportando animais de pequeno porte, desde que bem acomodados em sacos de estopa, para não incomodar os passageiros. E o bicho tem que vir bem limpo para não deixar cheiro no veículo, exige cauteloso o motorista que não pode deixar de atender o pedido dos produtores de ovos e frangos. Todos compadres.
                    O motorista arriscava curvas, conversas de viagens e elogios para cada moça que entrava no ônibus, primitivamente sedutor, como eram os homens simples diante de mulheres jovens, sem recursos artificiais. Ele, eternamente ao volante, imaginando saber dirigir a própria vida, cantava alegremente um rock, mas não sabia inglês, ou o roteiro para outros países. Nem mesmo a Rota 66. Tanto faz... Ou nenhuma diferença faz. O máximo que alcançava era Juiz de Fora, ou além, Além Paraíba, talvez... Um homem para muitas mulheres, imaginava-se ele no comando da condução.Condutor da liberdade utópica. Tal qual um marítimo: uma mulher em cada país; mas nunca saía dali.
                    Também as moças rurais não sabiam quanto eram belas... Eram todas muito semelhantes no jeito morno de arrastar os sorrisos, as bocas sem maquiagem, os embornais para compras na cidade mais próxima. Os corpos atarracados, os braços fortes, a pele queimada denunciando a vida dura e a vida doce que levavam... Só o corpo tinha noção do peso de algumas tarefas, porque o espírito pouco questionava, ou duvidava, ou desconfiava. Confiavam em Deus e pronto, era o que bastava para viver: a vida corria bem. Todos esbanjando esperança e certeza nas coisas divinas. Todas as preocupações eram entregues a Deus, que sabe o que faz. Não tinham mesmo o que perguntar sobre a existência, tão natural quanto a vida das outras criaturas, porque seria duvidar de Deus. Homem temente confia...
                    Arrumavam-se só mesmo para ir até a cidade, porque no mais ficavam metidas em trejeitos do dia-a-dia, mesmo descalças, nas roças, nas criações, colheitas e sonhos de uma vida diferente que viam nas novelas. Até supunham coisa mais fácil que amanhecer no cabo de enxada para ajudar pai e mãe, mas isto era coisa de se viver em cidade.
                    A moça deixava para trás as mulheres de sua casa, muito sozinhas na vida. Agora deixava a mãe sem o pai, a irmã sem o marido, a tia sem o sobrinho. Deixava o irmão cuidando de todas. Todas para cuidar do irmão... Assim ela partia, absolutamente só, como se houvesse uma mágoa pesando sobre cada um deles. O ônibus vinha de  Silveirânia e fazia baldeação em Rio Pomba. Ali uns diziam que era o fim do caminho; outros diziam que era o começo do destino, no vaivém de abraços banhados a lágrimas e a risos do interior de Minas. O destino de uns era resolver problemas, o de outros era visitar quem nascia, ou despedir-se de quem morria.... Uns abandonavam, outros acabavam de se conhecer; uns compravam, outros vendiam, e tudo se resolvia na paradoxal vertigem das estradas, onde se apalavram negócios e se promovem encontros. Amores, desamores, paixões e ódios no meio do caminho, ora de chão batido, ora de asfalto, que servia à ida, que servia à volta. Quem sabe nem isso, quem sabe nada, só o chão, o capim rolando vertiginosamente onda para cima e para baixo dos olhos dela. Quem sabe a ilusão sem matizes da poeira que o ônibus levantava, no imenso pasto verde com vacas esparsas, aqui e ali. Infinitamente belo o imenso vazio dos dois lados, plenos de coisa nenhuma, porque a natureza é o bastante. O mais nos aprisiona ou nos enche a alma, porque as chuvas deste verão não deram trégua, nem as lágrimas de inverno em torno de paisagens.
                    A moça entrou vislumbrando uma fileira de lugares vazios e preferiu assentar-se do lado de um senhor de aparência mais urbana que o resto dos passageiros. Assim, tinha diante de si apenas pessoas do lugar para lhe prender a atenção e tirava o intruso do seu foco. O homem agora do lado era o que já estava acostumada a ver e o que havia de mais distante e comum. Vinha cheio de vícios de cidade grande, com seus atributos afetados comprados em “shoppings”. Foi esta possibilidade, de o estranho ser um citadino, que a fez sentar-se ao seu lado, antes que tardiamente se perdessem as imagens. Assim podia esquecer o quanto ela mesma tinha mudado, equiparando-se a ele e ao tênue feixe de luz, em poltronas paralelas. Um ao lado do outro como estranhos vizinhos de apartamentos... Estavam acostumados a isto. O que precisava agora era ver gente do lugar, para se ver, comprovar como tinha sido ontem, quando sabia entender o sotaque molenga e o aroma de café moído na hora.
                    A moça, em confirmação ao desassossego alojado no peito, pôde perceber que a estrada não levaria a lugar nenhum, por mais que avançasse. Era uma ida sem destino, sem ninguém a esperar. Poderia ficar para sempre no meio do caminho, porque nem futuro ela concebia longe da mãe, dos irmãos, da casa, das cinzas que ficavam.
                         O caminho está... A condução vai e ela  chora,       
            enquanto os sinos dobram...

                   Valéria Á. Cerqueira 
                   In: Arte & Fato