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quarta-feira, 26 de dezembro de 2012

Papoulas


As papoulas serão para sempre minhas flores. 
E jamais haverá papoulas sem um menino a carregá-las nos braços,

Feito amores.
Um menino sol, ardente, angelical, apaixonado,
Capaz de resguardar as pétalas com infantil cuidado.
Acolho papoulas,

Que me encantem com ardentes traços,
Que me cubram, me enfeitem, me perfumem, me inebriem.
Que me calem, ou me façam falar,cantar um fado,


Enquanto riem ao meu lado.
Que me subjuguem, me afoguem me descubram em abraços.
Que me dispam, me desnudem, me salvem, me iluminem.
Que extasiem  meus sentidos, entorpeçam meus desejos...

Que me absolvam, ou que me condenem e me viciem.
Que me façam lembrar, ou me esquecer das dores,
Que me batizem, me nomeiem,  profetizem e escondam meus rubores...
Que me alimentem, me sustentem, me deixem faminta.
Que me dominem, me enalteçam, em rubra tinta...
Que me adormeçam, me anoiteçam, em esplendores
Pensando no menino do coração trazendo flores.






Valéria Aureo

segunda-feira, 5 de novembro de 2012

Alamedas



                                                                Ilustração: Internet


Caminho até a estrada...
A estrada que nunca vem.
Canto melodia solitária de homem do povo
exposto ao riso de quem me vê andar assoviando.

Sinto-me perdido na alameda centenária da cidade.
Sou teimoso e não me intimido
nem um pouco.
Demoro-me volvendo os calcanhares na atmosfera de escárnio.
Assim faço o mundo girar sob meus pés... Aperto o passo.
É dessa forma que prossigo, apesar de tudo e do maldizer.
Um ritmo pachorrento de cidade do interior banha-se em minhas lágrimas.
Em minhas caricaturas, em minhas pantomimas desenha-se um traço de urbanidade. Como qualquer gente do mundo eu tenho cá meus maus dias...
Quando eu era rapaz eles eram tão raros, mas agora, recomposto homem maduro, as ternuras vão-se dispersando cada vez mais no tempo e mais atenção tenho dado às brutalidades. São elas que me envolvem como uma mortalha.
Era preciso que um rapaz de vinte anos renascesse em mim, para que eu voltasse a sorrir mais amiúde.
Que fosse mais jovial, para que eu me desse conta das coisas boas que me visitam.
Nisto, e em tudo mais, o amor poderia ressurgir como um segredo dito aos meus ouvidos.
Ora, só tenho dado atenção ao homem caído no meio da rua; ao tiro que estilhaça minha vidraça, ao pequeno menino e seu olhar melancólico; ao bêbado e seu vômito, ao assassino e ao vagabundo nu.





Tenho esquecido as árvores, as alamedas...
E nisto, e em tudo mais, toda a gente daqui se parece; anda alarmada com imagens que o mundo ainda não repeliu: mendigos dormindo no colo das estátuas.
Se eu me comovo, uns zombam da minha maneira sensível
e afirmam que me atenho ao passado, que quero prolongar a juventude e fugir desta cidade...
Entre as palavras deles, veementes, escolho as minhas...
Entre carros que percorrem as ruas,
vislumbro mães, as mais humildes e seus beijos universais.
Bem sei que a fala da cidade não os comove, mas o luxo dos shoppings os ilude.
Tenho pra mim que minha simplicidade os inibe
tanto quanto as árvores seculares e sagradas.
Sei que costumam dormir, enquanto os arrebatados, como eu, inauguram o futuro e me criticam com tantas palavras, que como ventanias varrem as ruas...
Só os mais humildes, de memória e passado, me compreendem.

Valéria Áureo 


                                         Fonte: Internet

Poesia publicada em O Imparcial de Rio Pomba
em 13/07/2007

segunda-feira, 29 de outubro de 2012

A Casa de meu Pai



 

                         Ilustração Digital- Intervenção na Imagem


A casa de meu pai tem um canteiro,
Onde eu transito irrompendo um bosque.
Tem toscas janelas e uma tranca de madeiro.
Minha mão toca a aspereza sem verniz,

Tátil relevo das palavras tantas vezes ditas...
Os ouvidos tentam ignorar o clamor forte.
O olhar atravessa o fulgor, abrigado pela fresta,
Embora cada imagem desgastada ainda se repita.

Meu corpo está cadeado a sete chaves pequenas,
São oito crianças irmanadas, guardados nomes,
Cingidas num círculo de giz, no trevo da sorte.
Muitas vezes dormi, débil luz na incerteza,

Sob a única lâmpada mortiça e acesa.
Na casa dos dez ignorados destinos,
Cada um com suas recônditas dores...
São constantes as coisas da casa de meu pai.

Imorredouras e de dura substância e desatinos...
Cartas, poemas e sonhos brotam dela,
A cada vez que arrebento as pesadas tramelas.
A casa de meu pai tem uma passagem secreta...

Um quarto escuro, ampliador de autoridade.
Uma coberta de lenha, uma mangueira de folhagem,
Um punhal, uma navalha e goteiras no telhado.
Muitos argumentos, mil pátrias e eu um degredado...

Os objetos constantes da casa encerram austeridade.
Na mesa de desenho há química perpétua do sangue.
Sem sair da casa de meu pai viajo alforriado
Na Larousse, no embornal de pesca, expatriado.

Longe, na Antuérpia, albergado em Flandres,
A casa de minha mãe tem sempre-vivas,
Tão pequenas que não se podem vislumbrar.
Sente-se o bálsamo, sem saber da pétala lobrigada.

Uma cozinha e uma porta promissora de interstício
Nas constantes e intraduzíveis sombras, um trifólio.
Mesmo livre, todo evento me mantém ali subjugado.
Sentado em bancos, onde me pesam os ombros

Acostados no vento, no tamborete sem espaldar.
Ao sair da casa de minha mãe viajo encarcerado...
Na oração, no aroma misturado a copiosas lágrimas.
Folheio um livro autobiográfico, trazido comigo

Da improvisada estante de remoto abrigo,
Ora útil ao meu solitário e tímido ofício.
Interrompo mergulhos à beira do precipício...
Bebo em canecas de ágata azul a minha mocidade

Na sucessiva degradação do escasso esmalte...
Machucada laca na impiedosa consistência,
Das indestrutíveis e duras beiradas do tanque.
O jardim de minha mãe, que havemos plantado

Em latas de flandres, preserva o repertório.
A casa de minha mãe tem uma passagem secreta...
Sem sair da casa de minha mãe, continuo escravizado,
Na Catedral Gótica de Nossa Senhora, encarcerado.

No genuflexório, no quarto pequeno de luz apagada,
Que abriga obras de Rubens, vivo abençoado...
Longe, os objetos constantes da casa de minha mãe
Encerram silenciosa e padecente docilidade.


Valéria Aureo

Poesia Publicada em Entrelinhas Literárias - Antologia Scortecci de Poesias, Contos e Crônicas 
Scortecci Editora 2011
pags 362 a 369 

quarta-feira, 26 de setembro de 2012

             Poema a quatro mãos


O jacarandá-mimoso da minha rua está florido. Eu ontem,solitário,observava-o do meu sobrado...
De tão alto, ninguém o admira.
Os homens quase sempre costumam andar de cabeça baixa...
A árvore, generosa, ainda dá uma chance aos preocupados transeuntes: deixa um tapete perfumado e lilás na calçada, enfeitando-lhes os passos.
A mim parecem lágrimas...
Tão solitário é o jacarandá-mimoso da minha rua, que chora pétalas violáceas.
O jacarandá-mimoso da minha rua está florido,
mas chora como eu...
 
Para:Rita Zegur 
Primavera começa às 18h18 desta terça com previsão de mais chuva; flores de jacarandá mimoso em rua de SP


quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

Não fosse a poesia...






          Não fosse a poesia, nada mais seria possível, apenas um dia igual: amanhecer engolindo sem sentir a pressa e o gosto, minutos e café. Engolir a própria fome. Descer barranco abaixo sob a chuva fria, contornando o vento, a pobreza, ruelas estreitas e a solidão. Ser aprisionado pela vida no compromisso do sol com a luz, do galo com o canto, enquanto o pássaro aprecia preso na gaiola, a minha solidão. Eu, do lado de fora, em declarada ousadia, invado o inevitável dia. Começo tudo de novo, teimosamente. Recomponho na aridez do meu espaço aquilo que meu coração precisa para sobreviver. Tudo, sem repetir-se na óbvia sequência do dia: estar sempre desvendando trevas e tristezas, alternando sol e lua, buscando a cada instante alguma coisa que justifique a vida. Mas, na repetição diária de escolher os grãos de arroz, o coração fugitivo da rotina dedilha sílabas, compõe poemas e versos mosaicos sobre a mesa tosca. Não importa quanto falte, não importa quanto tudo me faz falta.  Separo as pedras do arroz e da própria existência, porque só estão ali para pesar. Separo e rejeito o sofrimento como pedras recolhidas entre os grãos brancos. A água da torneira improvisada escorre pela humilde louça, delineando um rio pia abaixo no novo destino do latão. As mãos limpam o peixe para o almoço, desvencilhando-o de entranhas e de escamas madrepérolas. O coração extasiado, reflexo da alma, deslumbra os movimentos do peixe antes, inexistentes agora; não mais livre na água fria do rio que só eu vejo.
          Eu pensava: os peixes são para os rios, como eu fui feito para voar. Em minhas mãos não há anéis, senão estrelas, pedras verdes, encantamentos sob o rio que eu refaço e que contenho entre os dedos. Talvez feito de lágrimas ou águas que escorrem morro abaixo, na composição da chuva insistente e o lamaçal. Aprisiono a vida, enquanto escamo o peixe agora inerte.  Rola pela minha boca a palavra dolorida, como um anzol fisgado na guelra lacerada. Nós dois assim, mutilados, temos nos comunicado no silêncio, enquanto relâmpagos acendem violetas nos meus olhos. Ah!...Não fosse a poesia...
          Ponho a mesa, estendo a toalha, visto a ceia em linho de sacos de trigo alvejados. Brancura farta na imensidão da mesa quase vazia. No coração as escamas arrancadas são cordilheiras, envoltas em fubá dourado, dorso do peixe servido à mesa, aprisionado na imobilidade do prato. Meus olhos jorram maremotos, enquanto a espinha travada na garganta anuncia a minha fragilidade. Na minha alma o peixe ainda nada esguio, escorregadio pela minha boca, restaurando a possibilidade de todos os sonhos e viagens. Penso na casa, na pouca comida, nas crianças, na vida... Mergulho na humildade de minha mesa tentando preencher o vazio dos pratos, alcançar o último nado, o naufrágio, as frias fossas sob as grutas. Do teto escorrem goteiras, esculpidos cristais em grutas, estalactites, lustres imaginários insinuando arquitetura dos anjos ou, quem sabe, lágrimas minhas, lágrimas dos meus filhos, lágrimas de Deus.
          Seria só um dia a mais no barraco úmido, não fosse a suavidade do vento compondo com a noite uma sinfonia depois da chuva. O vento cicia nas folhas de zinco e ouço violinos... Barro, barraco, barranco, briga, barulho, berreiro de crianças. Quantos sons desencontrados e os silêncios misturados. E quando a escuridão cobre a favela depois que a chuva passa, eu posso abrir a minha caixa de joias, eternamente ao meu alcance, simplesmente olhando para o céu... A primeira estrela que eu vejo, parece minha. Parece perto, parece sim. Eu a toco com a ponta dos dedos e a faço repousar como aliança, pássaro solto na palma da mão. Meu diamante solitário, brilho de esmeralda e alguma coisa de mim. Certamente a esperança... Ignoro tudo: um desassossego, um presságio, um jeito de solitário manter-se aflito no ar, um oceano de chapéus acenando despedidas... Beijos jogados ao léu, ruídos do espatifar de um cristal, que ouço em lugar dos gritos. Mas é meu todo aquele céu cravejado de brilhos. Meu, só meu, porque o alcanço com olhos e o desvendo com o coração. Posso tê-lo e guardá-lo onde sempre soube estar. Tão livre, tão à mercê de todos e ninguém pode tirá-lo. É... Ninguém o rouba de mim, nem o percebem. Não sei se longínqua ou próxima a minha fortuna.
          Uma eternidade provável eu percorro com os olhos e vejo toda constelação absolutamente livre no ar. Não avisto tetos de papelão, paredes de compensado, lixo amontoado, água escorrendo e lamaceiro. Não ouço os tiros, não ouço choro de crianças, esqueço-me da fome. Não sinto cheiros. Não percebo as entranhas da miséria. Estão expostas em esgoto e negrume luzidio. Meus olhos alcançam além das estrelas, muito acima das casas, muito, muito acima dos homens.
          Ah!... Não fosse a poesia e o meu modo longínquo e tão próximo de estar dentro da estrela...
         Eu tenho o céu, o sonho sobre a cidade adormecida e todo o encantamento dos poemas com que alimento a minha esperança à noite e recomeço o dia.
         Ah!... Não fosse a poesia, nada, nada justificaria a minha vida...


Valéria Áureo Cerqueira

Prêmio Academia Brasileira de Letras e Folha Dirigida- 2004