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quinta-feira, 25 de agosto de 2011

O Cronista

     Arte Digital: Intervenção na Imagem

Valéria  Á. Cerqueira



        Eu sou uma pessoa que não chora. Ou melhor, nunca em público, só mesmo bastante longe de qualquer olhar humano. Ou quando o olhar humano já deixou de existir. É que me habituei a isso, desde que fui trabalhar na agência que cuida dos últimos instantes do sujeito. Caso contrário choraria o tempo inteiro e espantaria os meus fregueses. E depois que arranjei esse trabalho, vejo esta vida assim, resumida na morte; escondido eu choro. Na frente dos outros seria a desgraça total, capaz de arruinar qualquer reputação de durão, construída durante anos a fio. Pelo visto sou eu, a princípio, mais a imensurável mágoa de ver o fim tão de perto. Ver através de quem conheci e amei. Diante do sofrimento foi que me decidi parar de chorar na frente de outros humanos. Há coisas fantásticas, não há? Uma delas é decidir parar de chorar. Entretanto choro perto dos cachorros, mas distante dos homens; não sei por que os dois me comovem tanto.
       Vai-se ao chope de final de semana, para ver a balada de moços e moças; vai-se à praia, ao cinema, ao shopping. Vai-se a todos os lugares. Pois eu prefiro estar em casa recolhido. Lá fora ouço barulhos, que põem toda a gente a saltar. A mim não, que sou tímido. Pouco ou nada se ouve com aquela música feita para explodir o crânio.. Eu não me entusiasmo, já não suporto tanto tais ruídos. Meus ouvidos padecem, quando distantes do meu local de trabalho. Lá, sim, constante bem estar. Ser, ou não ser... Este verso tem ecoado na minha cabeça nos últimos dias. A vida é curta demais, para perdermos tempo com jogos e indecisões, ou barulhos ensurdecedores... Ou é, ou não é. Agradável ou desagradável. Diferentemente disso, não há o que fazer. Antigamente eu era capaz de falar ininterruptamente, durante eternidades, sobre tudo e sobre nada, com qualquer pessoa, inclusive aquelas com tendências esquizofrênicas. Eu gostava de falar muito... Agora que conheço os esquizofrênicos, tenho que aproveitar todas as oportunidades para mostrar que fico sempre a ouvir silenciosamente, durante horas e horas, todos que encontro; ainda mais quando estão condoídos e enlutados. Hora em que falam mais e que precisam que alguém os ouça, sem restrições.
       Agora estou bem melhor; agora escuto muito mais, falo muito menos... Ouço o síndico, o porteiro, as namoradas dos amigos, a prima da tia da vizinha e todas as pessoas que a dado momento partilhem o mesmo espaço comigo. Todas precisam desabafar e eu ganharia um bom dinheiro se cobrasse para ouvir.
       No meu tempo de infância as Igrejas estavam sempre abertas. O sujeito entrava, falava diretamente com Deus, desabafava... Depois disso voltava aliviado para a vida. Agora, não! Não se vê mais uma Igreja disponível. Nem mesmo padre com tempo para ouvir. Sou o ouvinte de todos, mas poucos querem me ouvir. E isto não augura nada de bom para a minha vidinha, não augura não. Será que estou condenado a passar os restos dos meus dias com quem não tem resposta para me dar? E há dias em que tais tormentos são ainda mais verdadeiros. Dei-me ares de cronista, exatamente porque não tinha com quem falar; ninguém disposto a me ouvir. Passei a ter gosto profundo por casos de pessoas comuns; a crônica de cada um, que à minha alma chega, me faz indefeso para contestar o que falam a seu respeito. Absorvo um comentário leve e breve sobre algum fato do cotidiano. Fico comovido; e como já disse, às vezes choro escondido. Diante dos cachorros sim; jamais diante dos homens. Depois disso escrevo algo para ser lido enquanto se toma o café da manhã. O motivo de certas confidências, na maioria dos casos, é o pequeno incidente; coisa de pequena monta... A notícia em que ninguém prestou atenção, o acontecimento insignificante, a cena corriqueira. Nessas trivialidades, o que me surpreende é a beleza, a comicidade, os aspectos singulares dos quais eles não se dão conta. Mas eu estou atento a tudo. O tom certo de uma história surpreendente está onde menos se espera; é como "uma conversa aparentemente banal", entre uma baforada de cigarro, uma receita de remédio, a espera de um troco, a fila de idosos no Banco, um guarda-chuva que virou do avesso sob a ventania, um assovio na rua, um tiro na noite. Tudo fala aos meus ouvidos. Eu ouço. Eu pretendia apenas recolher da vida diária algo de seu disperso conteúdo humano. Visava ao circunstancial, ao episódico, que provavelmente não se repetirá. Ou, ao contrário, repete-se em toda casa, com todas as pessoas. Nessa perseguição do acidental, quer num flagrante de esquina, quer nas palavras de uma criança, ou num incidente doméstico, torno-me simples espectador. Mas, e eu? Onde fico se imagino que, enquanto observo a vida estou livre dela?
        O único tempo do meu dia que dedico a pensar sobre a morte é quando não ouço mais ninguém. Sempre observo o senhor tomando chope no bar em frente e me vem a ilusão de que ele também não se preocupa com ela. Ao menos com a própria morte. Pode ser até que pense em alguém que já se foi. Mas, é só e provavelmente por poucos segundos. Caso pensasse na sua própria morte, não estaria calmamente de pé fumando e bebendo seu chope. Ele o faz todos os dias. Daí todos os dias não pensar em si mesmo.
        O interessante é que do meu ponto de vista ninguém deveria representar a morte pelo fim, até porque se ouve muito o fato de a morte ser a transcendência do material para o espiritual, mas ainda assim, trabalhando aqui, é o momento único do dia em que não penso nela. A partir das conversas do fim de cada um é que me vem o começo de algumas idéias. Lidando com a morte é que eu penso na vida. E eu vejo que a vida é um espetáculo, como qualquer outro encenado no palco. Cada um tem seu personagem, mas passa a vida inteira decorando o texto. Quem afinal, veio para esta vida já sabendo o que fazer? Ninguém! Ninguém conhece nem o papel e nem o enredo. Por isto é que tudo tem que ser improvisado.
          Passam aqui em frente, muitas pessoas em companhia de outras. Antes de chegarem aqui perto elas riem e gargalham, mas quando mais próximas, todas param e olham para dentro; outras mais amedrontadas atravessam a rua. Preferem o outro lado da calçada. Muitas gargalhadas já foram interrompidas por choros e corpos, por velas e coroas, como se fosse o maior desrespeito continuar vivo depois da morte do outro. Tolice! A vida segue como se nada tivesse acontecido. Não há motivos para receios.
         O restante dos meus minutos, eu busco viver como se realmente eu não fosse morrer. Busco viver mesmo que seja diante de uma enorme conta de luz que não poderei pagar, ou andando apressado por essas bucólicas ruas que não me deixam nunca andar sozinho. Há sempre alguém vindo em minha direção, ou partindo comigo, para me fazer companhia. Busco levar sempre comigo a beleza de saber ouvir sobre a vida dos que precisam fazer confidências. Ainda assim, me pego sorrateiramente reclamando, às vezes, daquilo que pode ser consertado. No entanto, naquela funerária, as pessoas vão para resolver algo que não pode ser resolvido. Ao menos estou ali para que desabafem comigo. Se eu faço crônicas de tudo que ouço, paciência... Perdoem a minha indiscrição. Penso eternizar dessa forma os que acabam de partir. Histórias há... Muitas, para serem contadas. Há inclusive as minhas. São inúmeras no meu ofício... Nunca tinha me ocorrido que eu também sou personagem bufão desse teatro. Dei-me conta disto só agora. Sempre me imaginei o crítico da peça teatral. Vendo cada encenação, analisando, fazendo revisão, dando conceito. É... Um crítico teatral, era o que eu imaginava ser. Talvez o escritor da peça também eu pudesse desempenhar muito bem. Agora, vejo que não; sou figura dramática, como qualquer outro. Tenho meu papel para interpretar. Mais um pobre personagem saltimbanco desta vida.
       Uma vez fui encarregado pela família de colocar uvas no caixão de um chinês, conforme a tradição. Minha pobreza era maior que a veneração à cerimônia e o grande respeito ao meu ofício. Tenho orgulho do que faço e muita competência. Naquele dia, diante das uvas hesitei entre a responsabilidade e a curiosidade do paladar. Também me lembrei de minha mãe... Acho que pela fábula que sempre me contava:  “A raposa e as uvas”. Pois eu vi as uvas, lembrei-me de minha mãe... Achava um desperdício daquela iguaria ser levada junto com o morto. Levei para minha mãe que nunca tinha provado uvas e achou a fruta muito doce, muito refinada; declarou que uva é “uma coisa do outro mundo”. E não é que ela estava com a razão? Uvas... quase que iam mesmo para o outro mundo... Outra vez fiquei com os sapatos novinhos do defunto cliente, porque eu mesmo só andava descalço. É que tínhamos o mesmo tamanho de pé. Também achei que aquela coincidência de número de sapatos fosse um sinal celestial. Jurei para a família que os havia colocado no falecido que fez a viagem descalço. Ele que me perdoasse. Tenho certeza que, para onde ele estava indo, não precisaria deles. Ademais, rezei para que seu caminhar fosse sobre nuvens. Tinha certeza que não teria pedras para pisar, pela mansidão do seu semblante. Dava a impressão de homem generoso e despojado. Acatei a mensagem com a certeza de que o morto já tinha chegado ao céu e nem tinha precisado dos sapatos. É nos emolumentos fúnebres que encaramos a cruel realidade (sobretudo a nossa). Concluímos que nada é eterno, que as pessoas vão e por incrível que ainda nos pareça, não levam nada consigo. Nada do que levaram a vida inteira para amealhar. Nem mesmo os sapatos...
        A verdade a que cheguei até agora é que as pessoas realmente são muito frágeis, apressadas e confusas, e eu me incluo nessa louca ciranda de emoções. Também sou um homem triste. Reservo um tempo para chorar, mas só quando não há ninguém por perto, só o meu cachorro. E, quanto àquele sujeito do chope, imagino que ele se sinta melhor que os outros, ou mais tranqüilo, sei lá!... É o meu patrão! Deve pensar consigo mesmo que seu negócio é garantido; mais dia, menos dia, todos serão seus clientes nesta cidade tão pequena... Tem certeza absoluta de que vai ficar muito rico. Eu continuo como estou. Um coveiro cronista.

Valéria Áureo 
Publicado em: Entrelinhas Literárias- pags 362 a 369
Antologia Scortecci de Poesias, Contos e Crônicas Editora Scortecci 2011, lançada na Bienal do Livro de São Paulo, em 2012.

Leia: http://letraearteinsite.blogspot.com/

quinta-feira, 18 de agosto de 2011

Cálida Mão






                        
Há uma cálida mão
Repousando em meus curvados ombros.
Diáfano suporte,
Posto ali por sorte.
Translúcido afago e desejo,
Etéreo bálsamo dos anjos,
Que me ajuda a erguer o peso
E a suportar os anos.


Há horas que a mão é visível,
No sonho, ou nas minhas chagas...
Tem sempre um lenço acessível,
À mercê de minhas lágrimas.
Há horas que a mão é ventania,
Pronta a desfazer mágoas
E a dissipar melancolia.


Há horas que me toca suavemente,
Recompondo do meu rosto os escombros,
Fazendo-se uma brisa ardente,
Fazendo-se um abraço distante.
Fazendo-se amor constante,
Fazendo-se o olor das rosas...
Como se pássaro fosse,
Como se ave voando...
E me alivia as dores
Em permanência branda.

Há uma cálida mão,
Plena de candura, abençoada...
Repousando em meus curvados ombros,
Lado a lado aos meus.
Não sei se é a mão de Deus,
Não sei se a mão de minha amada.

Valéria Áureo
To: Vanessa B. M.
Livro de Poesias: "Sentimento disponível"

sábado, 6 de agosto de 2011

Oh! Triste fado meu...




- Meu rapaz, o que trouxe com você, no bolso do velho casaco?
- Papéis, penas, alguns rabiscos; rascunhos de uma carta dobrada no peito... E uma dor absurda de ser brasileiro. Nunca imaginei que algum dia tivesse coragem de pensar assim. Mágoa... Dói ser brasileiro!É sentimento de ser indefeso e tolo. Tenho ideias para uma carta ao bom e velho Pero Vaz: este que iniciou a sua peça com esmero e respeito, dando conta de suas impressões sobre o descobrimento:
Senhor,
posto que o Capitão-mor desta Vossa frota, e assim os outros capitães escrevam a Vossa Alteza a notícia do achamento desta Vossa terra nova, que se agora nesta navegação achou, não deixarei de também dar disso minha conta a Vossa Alteza, assim como eu melhor puder, ainda que -- para o bem contar e falar -- o saiba pior que todos fazer!
Todavia tome Vossa Alteza minha ignorância por boa vontade, a qual bem certo creia que, para aformosentar nem afear, aqui não há de pôr mais do que aquilo que vi e me pareceu.
Da marinhagem e das singraduras do caminho não darei aqui conta a Vossa Alteza -- porque o não saberei fazer -- e os pilotos devem ter este cuidado.
E portanto, Senhor, do que hei de falar começo...”
Ouso interromper, caro Senhor!... Afirmo ao distante autor de remota missiva, que também aprecio contar e falar. Também desejo por à vista o que vejo e me parece. Dar-lhe conta sem aformosear ou enfear os acontecimentos. Aliás, desejava fazê-lo há mais tempo; desejava dizer dos meus sentimentos pessoalmente, aí mesmo em Portugal. Qual!... Impressão de assombro ora me invade!... Se tão bem navegavam à época dos descobrimentos, sinto lhe dizer que das singraduras em mares nunca dantes navegados aos dias de hoje, deu-se grande transformação. Pensei em ir à boa terrinha, não como se fazia outrora, por mares bravios. Há muito, vai-se com conforto pelo ar! Ao menos é o que dizem. Mas o caos aéreo me impediu, meses a fio, de fazer tal empreendimento pelos céus. Quando tudo se ajeitou e o medo de queda de avião se aquietou no peito, tentei ir a Portugal entrando pela Espanha. A viagem seria mais em conta, pois ando com parcos recursos. Agruras de um pobre estudante, mas brioso em seu intento. Inopinadamente barraram-me e deportaram-me e debati-me em maus lençóis. Alegaram ser uma entre tantas medidas de controle da Comunidade Europeia... A mesma que fecha os olhos magistralmente para a “entrada” de nossa madeira e os arregala para me deter sem compaixão. Aliás, o mundo sempre me surpreende. Cá os europeus e tantos outros povos de qualquer parte do mundo sempre foram generosamente acolhidos... Lá, tive empecilhos e aborrecimentos. É isto; não me deixaram entrar. Brasileiros sempre foram acolhedores, ou fáceis de enganar... Não fui eu quem o disse. Foi Pero Vaz. E ainda o são! Desde a época dos cordiais e receptivos nativos. Sustento-me nessa convicção com argumento de sua própria lavra na brilhante missiva, meu caro Senhor:
... Andariam na praia, quando saímos, oito ou dez deles; e de aí a pouco começaram a vir. E parece-me que viriam este dia a praia quatrocentos ou quatrocentos e cinqüenta. Alguns deles traziam arcos e setas; e deram tudo em troca de carapuças e por qualquer coisa que lhes davam. Comiam conosco do que lhes dávamos, e alguns deles bebiam vinho, ao passo que outros o não podiam beber. Mas quer-me parecer que, se os acostumarem, o hão de beber de boa vontade! Andavam todos tão bem dispostos e tão bem feitos e galantes com suas pinturas que agradavam. Acarretavam dessa lenha quanta podiam, com mil boas vontades, e levavam-na aos batéis. E estavam já mais mansos e seguros entre nós do que nós estávamos entre eles.
Tenho cá em meu bolso surrado um mapa, para que alguém me mostre o que é o meu país, ou o que é a África, ou a América Latina; é porque não os compreendo nos livros publicados nos Estados Unidos. Não os compreendo entre quatro paredes da antiga biblioteca pública. Muito menos no noticiário! Confundo-me e imagino estar ficando velho. Pior ainda; temo estar ficando louco... As enciclopédias obsoletas aprisionam a geografia em papel acetinado e tintas fortes, como se tudo estivesse muito bem; enquanto isso a paisagem pálida da Aquarela do Brasil viaja clandestinamente carregada em toras de madeira para a Comunidade Europeia, para além de nossas fronteiras. Na Internet divulgam que a Amazônia não é território brasileiro. Daqui vai a madeira, repetindo a destinação extrativista do pau-brasil; assim vão os minérios, as espécies raras, a dignidade do povo... Estou cansado! Dispersam gratuitamente a flora, a fauna, a biodiversidade como coisa de ninguém...
Ando abatido, desanimado; ironicamente um trocista recomendou-me um bronzeador para disfarçar minha palidez: um produto à base de urucum. Alegou-me o pândego ser o produto o que há de mais moderno e o mais apropriado para o meu caso: meu descoramento é de pânico e medo, zombou. Acho que sua intenção é me matar. O bronzeador à base de urucum é produto francês PATENTEADO. Diante disso devo advertir que, como eu, os tupis, guaranis, aimorés e todos os outros não foram advertidos. Ah! O Guarani... Se o soubesse à ocasião, ficaria rubro de ódio e vergonha. Também eu me sinto um índio ludibriado a custa de miçangas e apitos:
Eu ingenuamente argumento: existe planta mais simbolicamente brasileira que o urucum? Tipicamente “coisa" de índio? Pobres aborígines!... Então vejamos em carta do punho do ilustre Senhor, o estranhamento que a bizarra planta causou ao europeu: “Neste dia os vimos mais de perto e mais à nossa vontade, por andarmos quase todos misturados: uns andavam quartejados daquelas tinturas, outros de metades, outros de tanta feição como em pano de ras, e todos com os beiços furados, muitos com os ossos neles, e bastantes sem ossos. Alguns traziam uns ouriços verdes, de árvores, que na cor queriam parecer de castanheiras, embora fossem muito mais pequenos. E estavam cheios de uns grãos vermelhos, pequeninos que, esmagando-se entre os dedos, se desfaziam na tinta muito vermelha de que andavam tingidos. E quanto mais se molhavam, tanto mais vermelhos ficavam.”
Fico sem entender muita coisa e perco o sono... Quem sabe uma valeriana de medicina farmacêutica me fizesse dormir. Recorro aos industrializados na hipótese de não mais encontrar camomila, erva-doce, erva-cidreira nos quintais. Sou um pobre romântico e ainda choro como um desvalido menino, quando escuto o Hino Nacional. Muitos riem de minha ingenuidade. Não me importo.
O cartógrafo desavisado faz o mapa da recente geografia. Os comerciantes vendem a América Latina em tiras de papel nas bancas de jornal. Ouvi dizer que custam cem pesos... Duas medidas... Sem peso na consciência, meu Senhor.
Moro à beira mar, equilibrando-me na linha imaginária da Terra e oceano, onde navios vieram aportar.. Como os grandes navegantes, penso desbravar os limites de continentes e compreender as intenções de nossos amigos. Guardo dor de alma provocada pelo orgulho da Pátria ferida, se é que me entende. Outrora os poetas costumavam se lamentar em versos e em prosa. Alguma coisa mudou, mas ainda hoje se ouvem os lamentos do Navio Negreiro vindos do mar reverberando pelas ruelas e morros. Gritos sob o retumbar dos tambores e os estampidos. A verdade é que já não consigo mais distinguir,  onde estão os limites; os da terra e os dos homens; não distingo nem mesmo os limites do Brasil.
'Stamos em pleno mar... Posso ouvir de minha janela.
Terra à vista! Gritou alvíssaras o efusivo descobridor português...
Terra a prazo! Gritos nos pregões da Bolsa de Valores... Terras em suaves prestações! Se em “minha terra tem palmeiras onde canta o sabiá”, talvez Gonçalves Dias, como eu, tenha se iludido com a Carta de Pero Vaz de Caminha. Desde que a escreveu (precisamente deste Porto Seguro, da Vossa Ilha de Vera Cruz, hoje, sexta-feira, primeiro dia de maio de 1500), meu Senhor, o Brasil vai generosamente distribuindo em saladas e mobiliários a floresta; vai saciando a imperecível gula e degustação do palmito, até a corrosiva estética dos obesos exploradores de madeiras...
Foi o Capitão com alguns de nós um pedaço por este arvoredo até um ribeiro grande, e de muita água, que ao nosso parecer é o mesmo que vem ter à praia, em que nós tomamos água. Ali descansamos um pedaço, bebendo e folgando, ao longo dele, entre esse arvoredo que é tanto e tamanho e tão basto e de tanta qualidade de folhagem que não se pode calcular. Há lá muitas palmeiras, de que colhemos muitos e bons palmitos.” ... Enquanto andávamos nessa mata a cortar lenha, atravessavam alguns papagaios essas árvores; verdes uns, e pardos, outros, grandes e pequenos, de sorte que me parece que haverá muitos nesta terra. Todavia os que vi não seriam mais que nove ou dez, quando muito. Outras aves não vimos então, a não ser algumas pombas-seixeiras, e pareceram-me maiores bastante do que as de Portugal. Vários diziam que viram rolas, mas eu não as vi. Todavia segundo os arvoredos são mui muitos e grandes, e de infinitas espécies, não duvido que por esse sertão haja muitas aves!”
Se lhe disse das palmeiras, caro Senhor, dou-lhe endereço do sabiá. Eu digo logo de seu trágico destino. Dele e dos demais pássaros: espécies nativas são embaladas em canos de PVC... (Para Viagem Contrabando, suponho)... A fortuna deles vale poucos centavos; viajam para morrer no caminho traçado por mesquinhos e ignorantes brasileiros.
Lembra-se do deslumbramento que esta terra recém-descoberta lhe causou, caro Pero Vaz de Caminha?“Até agora não pudemos saber se há ouro ou prata nela, ou outra coisa de metal, ou ferro; nem lha vimos. Contudo a terra em si é de muito bons ares frescos e temperados como os de Entre-Douro-e-Minho, porque neste tempo d'agora assim os achávamos como os de lá. Águas são muitas; infinitas. Em tal maneira é graciosa que, querendo-a aproveitar, dar-se-á nela tudo; por causa das águas que tem!”
Pois é, muitos se encantaram como o Senhor. A Amazônia brasileira me faz sofrer se a vejo esgotar-se sob o silêncio nacional... Evito os jornais... Eu me pergunto: que vozes cantam pelas aves, águas e árvores de minha pátria?... O rio Amazonas transporta minhas lágrimas. O oceano Atlântico permite o caminho inverso aos grandes descobrimentos. A viagem de volta transporta em invertidos navios negreiros mulheres para servirem ao Velho Mundo... Navios e aviões ainda transportam escravos.
Cartas do Brasil vêm e vão pelas Américas, Europa, Ásia, África e Oceania ao som de samba, enquanto os pés doloridos pisam asfalto, favelas ou canaviais. Algumas contam verdades, outras contam mentiras, enquanto “ojos” choram ao som de violões, guitarras e bandanéons.
Oh! Triste fado meu...
Assim despeço-me, meu Senhor, com o auxílio de Castro Alves em seu Navio Negreiro:
Existe um povo que a bandeira empresta
P'ra cobrir tanta infâmia e cobardia!...
E deixa-a transformar-se nessa festa
Em manto impuro de bacante fria!...
Meu Deus! Meu Deus! Mas que bandeira é esta,
Que impudente na gávea tripudia?”
Mas quem pode com essa vida e essa História, meu Senhor?
Valéria Áureo


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