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segunda-feira, 14 de novembro de 2016

Para Edith Piaf - Arquitetura Feminina





                                                Ilustração: Internet

 

( Non, je ne regrette rien...)

Meu espírito aprisionado na arquitetura feminina
Anseia habitar um corpo de aventuras; desejoso 

De invadir o desconhecido mundo. Fazer-se outro...
Capaz assim de viajar sozinho e no caminho
Desviar-se no aeroporto, mergulhar fundo,
Sem ouvir a última chamada para o avião. 

Partir...
Perder-se no saguão.
Fugir. 

Dormir até o pouso,
E então largar toda a bagagem,
E se encontrar entre desconhecidos; decidir mudar o rumo.
Só por prazer, sem lágrimas no Galeão.
Dessa autonomia desconheço o desafio.
Minhas saias nada me conferem,
Só a fragilidade da boca desenhada no batom

E um destino.
Se assim não fosse eu poderia, cercada de amigos,
Sair, dançar à noite -  ver nova paisagem-
Vasculhar o escondido, provar o que não provo.
Ter histórias, cicatrizes, nódoas, mágoas de amantes,
Lenços e saudades. Ilusões e prantos,

Mas sou antiga como d'antes...

Mas, senhora afeita ao doméstico canto,
Repito-me na repetição de minha mãe;
Refaço a alma na costura de meninas,
Desejando o jeito livre de querer:
Muitos países, outras pessoas, distantes línguas.
Romper com o dia, me despertar na noite.
Ouvir muitas histórias...  Acontecer comigo.
Ficar no bar, fumar, tossir, me embebedar...
Ai de mim, cordata senhora, protegida no abrigo.
Conciliadora, maternal. Na pátria dormindo.
Sistemática, ajustada eu  sempre sigo,
Na prevista performance de primeiro

Ter o sol e ao fim do dia a lua.
Nada imprevisível; circunspecta senhora.
Espectadora, dócil, contida atriz...
Eu sei que existe o mundo da Abrantes.
Precisaria romper a proposta da casa,
De acordar, de arrumar, de cozinhar e pôr a mesa,
De alimentar, de repetir-se a mãe, a vó na filha,
Tecidas todas no milenar projeto. O feminino... 


Assim resta-me a poesia comportada do destino,
Que deverá ser encontrada no meu signo,
No diário, à luz do sol, às claras, no vespertino,
No brilho do talher, no tempero, na fruta dura,
No temperamento maternal, na goma do bordado,
No fio de lã, no assoalho, na costura,

A procurar meias de pares dispersados,
Na alvura da toalha, no móvel encerado.
Assim, resta a poesia pura, minha senhora,
Que deverá servir à mesa a ceia. (Não demora!)
Refletida no cristal do lustre, no fogão, nas labaredas.
Repartida na janela, a íris, a cabeça
Na divisão da hora. Não esqueça a sobremesa!

A musse de cereja!

Eu sei que existe o mundo da Abrantes...
Eu sei que existe o mundo lá  fora.

É no extremo da mãe que está a filha
Antiga como d'antes.




Autora: Valéria Áureo