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sábado, 22 de setembro de 2018

No Meio do Caminho da Marquês de Abrantes


“No meio do caminho tinha uma pedra/ Tinha uma pedra no meio do caminho”.
No meio do caminho tinha uma perda. Tinha uma perda, no meio do caminho. No meio do caminho tinha uma pedra, um revólver, uma bala, uma perda, enquanto andava pela rua o homem despojado de malícias.
“Nunca me esquecerei desse acontecimento
na vida de minhas retinas tão fatigadas”.
Um corpo octogenário estirado, uma rosa rubra de sangue estampada na camisa. A massagem cardíaca, o sangue se esvaindo e contornando os desenhos da calçada.
Nunca me esquecerei da fuga do sopro divino!
Havia uma bala travada no peito de quem inocentemente completava a rotina da tarde, carregando sua sacola de compras de ingenuidades.
Nunca me esquecerei que no meio do caminho da Marquês de Abrantes tinha uma pedra, tinha uma bala...
No meio do caminho tinha uma pedra, uma bala, uma perda... Morte na Marquês de Abrantes.
Nunca me esquecerei desse trágico poema na minha rua.
Valha- me Deus! Por isso eu quero a espada de Cervantes!


Autora: Valéria Áureo

To: Nelson Musachio, de 79 anos, morreu após ser baleado na calçada da Rua Marquês de Abrantes, no Flamengo, na Zona Sul do Rio.

sexta-feira, 20 de julho de 2018

Lua II


Exercita-se a Lua em tênue fio,
Malabarista noturna dos astros.
Na ponta dos pés, despida no rio,
Equilibrando-se no extremo dos mastros.
Sapatilhas azuis, encobertas na noite
Acrobata em salto mortal. Nas nuvens.
Contorcionista de mil braços, raios na cidade...
Eternidade interrompida pelo sol.
A prata de um açoite
Vara a escuridão dos bares
Tão logo fulgura a claridade.

Traça ela na vastidão do infinito
Na crescente circunferência,
Mil paralelas sem fim;
Coroa de sua lavra, a imagem prateada
Vem se refletir na água.
Seu contorno na alcova, no verso,
Acoberta a mulher amada
Empalidecendo-se no dia nascente.
Lua!... Ver-se assim refletida e desnuda
Em fases de tantas elas, bailando...
Lua, Lua, Lua... Cheia, nova, minguante:
Cíntia, Selene, Ártemis, Diana...
Em todas elas se esconde.
Dança, se triste, ou crescente,
Expõe-se iluminada e candente
Iluminando o amor disperso,
Em alvíssima porcelana...
Na órbita dos astros sequentes,
Na escuridão do universo.

Autora: Valéria Áureo
In: As Folhas Devem Cair

quarta-feira, 10 de janeiro de 2018

A mão da Condessa e a carta de adeus




A Condessa era dada a cartas, piano, leituras, passeios pelos jardins, chás e conversas triviais.
Dias e noites em cantos suaves e madrigais.
Todo o seu tempo ia nisso, no que ela se sentia muito bem, entre os corriqueiros e banais fatos palacianos;
Do amor era refém
Em dias, meses, dez anos.
Ambos se amando e tão joviais eram eternos...
A mão da Condessa, leve como uma pluma se assemelhava à volátil espuma,
Deslizando suavemente sobre o papel de seda - a lua, onde deixava pequenos recados para o conde:
dois corações de filigranas - saudades, meu amor!
Aonde é que se esconde?
A mão do Conde, pesada como um puma, arranha a folha delicada e arrisca um rabisco.
Comete deslizes ortográficos, despetalando a última flor no palácio, com desembaraço.
Nas mãos o sabre e no corpo a armadura
Delineiam o último traço.
O fatal risco!
Escreve aflito! Estou cansado de juras, juras! Que inferno!
A Condessa os erros dele arruma com candura...
E os encaixa nos falares galantes e gentis do palácio
Com brandura:
- Para mim o amor é eterno!
Até que um dia ele grita e bate a porta

Num arroubo de loucura:
- Chega! Nada mais me importa!
Sua cultura, senhora Condessa, me atormenta e me sufoca!

Deixe-me sozinho, criatura!


Autora: Valeria Áureo
To: Conde du Marrot.
In: Docilidade dos Sobreviventes