A vida só não basta;
Precisa de arte para ter graça,
No aperto do vagão, no preço da passagem, na Barca...
- Chuta! Grita o moleque... Ataca!
O corpo esguio balançando no travessão!
Saltos, dribles por instinto, teima e vocação.
Do outro lado da ponte, na contramão, há suor e pobreza.
- Segura! O
beque!Aí... Beleza!
Fazendo da linha a defesa,
Com fé, água benta, Igreja da Conceição.
O menino sonha com um pai levando-o pela mão:
- Vou ser
Zico, Neymar, Pelé, o craque!
A figurinha difícil do almanaque!
Ah! O domingo é maior: é feito de esperança,
No terreno baldio, na chuva, no barro, no sol,
No campinho de futebol,
Onde a bola dança...
Todo menino é igual: na magreza, no olhar para o
infinito,
Nos pés de redemoinho, na bola de jornal; ao som do
apito,
No interminável grito: - é gooooool!
Bola de papel, bola de meia, na grama, na lama, na areia,
O menino busca o pai: dribla, faz jogada, dá trivela,
Dá finta, volteia, dá rabo de arraia, cambaleia.
Bicicleta! Pedalada! Carrinho! Rasteira!...
Pula, se estica, sua e faz cara feia.
- Deixa pra
mim, eu vou! Eu “pego ela!...”
Sangue na veia e azougue na canela...
Entusiasmo e um passe acrobático
De tabela.
No contorno da camisa o suor faz despontar
A magreza e a tíbia costela.
No beco
o som sobe o Morro do Céu.
No jogo
de domingo o menino se destaca,
É rei.
E
marca: um, dois, três...
- Três? Quero música no Fantástico!
Festa na
Cantareira...
Créu!
Créu!
Com
direito a replay.
Vou
postar no Instagram!
Vou
mandar pras minhas fãs!
A
meninada zomba, ri, comemora a mocidade,
Tendo o abandono por
cumplicidade.
Galopando nos raios, sem arreios;
bonitos, feios...
Eles vão.
O menino ensaia a celebração do
gol:
A dancinha, o Blonder, o corte de
cabelo...
Para se distinguir, do que é
comum, igual, de onde veio,
E não ser apenas mais um, ou
apenas o do meio.
- Vou jogar na Seleção!
Vou jogar no
Barcelona!
Assinar contrato, deixar de ser
carona.
Viajar de avião, conhecer o mundo
inteiro.
Vou ganhar muito dinheiro!
É... Conhecer meu pai!
Dar uma casa “pro veio”...
Carrão e sucesso com “as mina”
Smartphone.
Camboinhas todo ano.
Relógio... Cordão. Cabelo
“estiloso”
Beckham. Cristiano Ronaldo.
Moicano.
Demais... “As mina pira!”
Vou ser jogador sério.
Dono da braçadeira de capitão.
Ah! Quero ter um celular,
Fazer selfie no espelho.
Ser o titular,
O artilheiro.
Benzer do mau olhado o pé, a
perna inteira,
Fechar meu corpo, proteger o meu
joelho.
E sonha driblando a pobreza com
chute certeiro:
- Vou ser campeão!
Acabar com a penúria, retrato
3X4,
Desviar a bola que vem de graça,
E bate na trave da primeira
divisão.
No ritmo
das pernas velozes, a vida não pára e vai...
Treino. Olho no Barça, olho na
taça e ouro na mão:
Ter um trono na “pátria das
chuteiras”
O automóvel, a ostentação, a
cabeleira,
Enquanto
a solidão goleia, com pé sujo,
O
asfalto, a rua, o Morro do Caramujo,
Desfazendo
as ilusões dos títulos e campeonatos...
São
tantos Zezinhos, Manéis, Renatos...
São todos filhos de Deus:
veteranos e novatos,
Sem identidade, sem paradeiro.
Buscando a todo custo a vitória,
Confiando na fama,
Para elucidar o anonimato.
Pulam,
rolam, cospem, correm, batem.
Voam... Gritam, xingam, vivem a
infância.
Nas várzeas
os berros diminuem a distância
Inventam
técnicos paternais a dar conselho,
Para
desfazer da família o laço abstrato.
Nos campos das comunidades, dos
orfanatos:
Pretos,
brancos, toda cor, cabelos caracóis; santinhos,
Todos
repetem a mesma história.
Todo
menino vive e sonha com a glória,
A figura
do pai, a origem, o autorretrato...
A selfie
no espelho
Autora: Valéria Áureo
Prêmio UFF 2014- Menção Honrosa- Poesia
Autora: Valéria Áureo
Prêmio UFF 2014- Menção Honrosa- Poesia