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sábado, 31 de dezembro de 2011

Adeus







        Agora que estavam tão próximos do fim, mais apegados estavam um ao outro, sentados lado a lado, no pequeno espaço de frente do quintal. Olhavam horas a fio a mangueira e a verdejante videira, fiscalizando cachos de uvas destinados aos netos de fim de ano. No extremo da idade, já tão velhinhos, se assemelhavam a duas crianças de mãos dadas, assentados depois de uma estonteante ciranda. Muito mais eles desejavam o tempo para o recomeço, cada vez que a memória trazia à tona lembranças da infância. Às vezes, passeavam enlaçados pelos dedos. Percorriam o caminho que geminava as duas casas, quando nenhum dos filhos pudesse flagrar aquela ingênua intimidade. Seco e poeirento era o quintal e as folhas da pequena parreira sob o pé de manga, que lhes servia de jardim. Que fossem muito doces as mangas e as uvas, negadas aos passarinhos e acauteladas para cada um dos filhos seus... Os pais lhes ambicionavam doce destino.
        Secos já estavam os olhos espremidos em rendas de rugas que os faziam pequenos, pequenos e melancólicos... À tardinha a escada que levava ao segundo andar servia de bancos para os gatos e os vasos de antúrios. Quando o sol era um pouco menos quente repartiam ali um café que ele preparava para ela, porque era silencioso de palavras o amor que ele lhe tinha. Era feito de pequenos gestos recentes, aprendidos na velhice, quando enfim ele pode descobrir que mais que as mágoas, tinha sobrevivido um sentimento perene, acobertado vida inteira. .
       Viviam juntos há mais de sessenta anos. Já não se podia dizer que eram duas criaturas, pois que nada sabiam ou podiam um sem o outro; nem pensar, andar, falar, sorrir ou haver o mundo. Ele trabalhara com a luz, sol a sol, noite a noite, fugindo nos desejos e nos sonhos para lugares em que ela não o acompanhava. Costumava evadir-se ao encalço dos lambaris do rio Formoso, porque ali se deixava carregar água abaixo, enquanto desaguava suas dores. Ela cuidara dos filhos, parira quatorze, perdera seis para a natureza, por destino, e também habitara nostalgias que só ela conhecia. Nesse tempo ambos andaram afastados de si, tal a dureza da vida, caminhando cada um o seu caminho. Mas sempre lado a lado, apesar de tudo. Quando ele queria, deitavam-se juntos. Quando não, ela dormia no seu lado da cama, sossegada, enrodilhada constantemente como gato de estimação em borralho. Nunca se separaram. Nem mesmo quando a desavença foi maior ou quando quase todos partiram. Mesmo os filhos.
       Agora, os dois, ali, à beira da tarde, pensavam que mesmo em meio à solidão, a vida podia ser boa e bela. Mas nada falavam, porque já haviam se habituado aos longos silêncios. Ou ele falava, gritava e ela ouvia e silenciava. Longe, apenas o canarinho cantava acima da saudosa gritaria de crianças, que tinham crescido. No mais o silêncio para sempre.
      Antes da noite eles dormiam. Um dia e outro e outro.  Eles viram passar o tempo, como se fosse uma tempestade forte e, até então, se tinham de mãos dadas, quando os filhos não olhavam invadindo essa timidez. Aos poucos souberam que haviam de se deixar. Souberam que, em breve, seria a sua hora. Hora única. De cada um. Que, depois de toda uma vida lado a lado sem quase se falarem, seguiriam separados, quando bem o decidisse Deus. Quando pensavam nisso, prometiam se reencontrar...
       Mais uma vez, para eles, inúteis eram as palavras. Pois se adivinhavam, mutuamente, os pensamentos e o temor de saber quem iria partir primeiro.
      Quando a noite caiu e uma imensa lua clareou a terra, se deixaram ficar, mais um pouco, ali fora, povoados pelo sentimento da separação.
       Assim que ele se foi, mais silenciosa Wanda ficou... Ela está esperando uma lua inteira brilhar nos seus olhos azuis, trazendo-o de volta.

Valéria Áureo

quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

Sortilégio dos Signos


 





          Leonardo era leonino, sonhador e sentimental; ao menos era o que dizia a empregada da casa, quando se referia ao patrão: meio atrapalhado, mas muito boa pessoa, assim o resumia. Ele não amanhecia o dia sem o café quente no copo e a página do jornal aberta no horóscopo. Hábito que adquirira com a namoradinha da adolescência, que gostava de adivinhar o futuro, perfumando o presente com incenso.
           Harmonia com libra... Momento propício para projetos e definições de natureza sentimental. O amor cruzará sua vida no dia de hoje. Fique atento. Naquele dia as previsões eram favoráveis para um encontro de dois signos que formam o par perfeito. Era o que constava na tira fina de previsões para quarta-feira, 20 de outubro de 2010, no jornal. Dia de topar com as imagens esfumaçadas e telúricas; leão e as veleidades do mapa zodiacal em perfeita conjunção com libra. Não era todo dia que as previsões eram tão otimistas... Hoje não! Enfim era o dia de encontrar o amor. Estava escrito em seu mapa astrológico, o prognóstico de uma oportunidade alvissareira. Tratou, pois, de se arrumar o mais detalhadamente possível: barba por escanhoar, resolveu com um cuidado esmerado, imaginando o toque da pele no rosto da mulher que encontraria; quem sabe no elevador, no metrô, nas escadas do Ministério do Trabalho. O corpo inteiro para conferir diante do espelho da porta do armário. Detalhes para conferir nas unhas, nos pelos do nariz e das orelhas. Dentes caprichados na escovação sistemática e visitas constantes ao dentista. Por isto não fumava e nem tomava café. Era agradável ter dentes que chamavam atenção pela brancura e alinhamento. Poderia se dizer que eram perfeitos. Adornavam o sorriso escancarado do sujeito sempre bem falante. Poderia se resumir que ele era um homem muito simpático e bem humorado. Mesmo assim, esperou quarenta e três anos, para que aparecesse um sinal, uma presciência tão otimista, como a deste dia. Finalmente... Hoje era a sua grande chance. Escolheu com cuidado a roupa; discreta e elegante. Foi comedido no perfume. Colocou comida para os peixes no grande aquário da sala...
        Eliana era libriana e muito  realista. Bem sucedida na profissão, foi deixando o tempo do amor passar. Quarenta anos... Foi o período que consumira para se tornar uma executiva, emancipada, líder, livre e totalmente independente. Desativara o relógio biológico por muito tempo, para que os projetos de sua vida profissional não descarrilassem. Não queria filhos, porque preferia debêntures. Não seria bancada por ninguém; assim planejou sua vida, com um cronômetro de sensatez e controle de todas as emoções. Hoje, ao ler o caderno de economia, tomou ciência da estabilidade da moeda. Tudo sob controle, pensou. Nada que pudesse provocar inquietações e crise no Mercado Financeiro. Comprava ações da Petrobrás, comprava euros e diversificava as suas aplicações. Para descontrair foi ao horóscopo. Riu... Par perfeito... Ainda acreditavam nisto? Que tolice! Leão e as veleidades do mapa zodiacal em perfeita conjunção com libra. Momento propício para projetos e definições de caráter sentimental. O amor cruzará sua vida no dia de hoje. Fique atento. Tornou a rir e fechou o jornal. Amarrou os cabelos de forma displicente, tomou um banho, escolheu uma roupa formal e colocou o perfume de sempre. Colocou comida para o gato siamês, Amour, que lhe fazia companhia.
      Eliana e Leonardo pegavam a mesma linha no mesmo horário; o mesmo Metrô, na Estação Catete em direção à Zona Norte. Destino... Centro da Cidade! Na cabeça dos dois repetia-se a previsão do horóscopo do dia: O amor cruzará sua vida no dia de hoje. Fique atento. Leão e as veleidades do mapa zodiacal em perfeita conjunção com libra... Eliana e Leonardo  nunca entraram no mesmo vagão do trem.

Valéria Á. Cerqueira

segunda-feira, 7 de novembro de 2011

Nossa Senhora dos Tristes


                                                    Desenho Digital: Intervenção na Imagem
                                                                  Valéria Á. Cerqueira




           São Francisco de Assis* em suas andanças pastoris, levou-me à inspiração deste madrigal sacro... Encontrei Nossa Senhora na beira do rio, lavando os paninhos do seu Bento filho. A Senhora cantava baixinho e a dor escorria junto com a água turva da tina. Não tinha letra a canção, só plangente melodia, que Maria sussurrava. São José assoviava acompanhando a sinfonia; Maria murmurava e o menino ouvia.  Água vai, água vem cristalina das terras de Belém, lavando os pés do pastor... Nasceu Nosso Senhor!
         Eu olhava a espuma branca que no arroio fluía.
         O manto azul da Virgem a pele alva encobria, a veste branca de luz adornava a escuridão. No céu brilhava a estrela guia... O anjo Gabriel vigiava a Sagrada família, o carneirinho repousava no chão, ao pequeno a lã cedia. Maria devia saber: nunca antes do tempo...
         Eu via a água verter enquanto o menino dormia: corria a água no rosto, a dos olhos de Maria...
         O pai entalhava um tronco; a mãe entoava um canto. Num canto o pequeno dormia. A cantiga era tão triste, a que o vento trazia, enquanto Maria batia a roupa na ribeirinha. A Senhora lavava e São José estendia o pouco de pano que havia... Senhora da Humildade! Bem sei que ela me ouvia! A água benta escorria, refrigério em minha mão... Virgem da Consolação!
         O vento forte secava a manta surrada e fina, o sol aquecia a estrada e o jumentinho pastava na relva luzidia. E o menino sonhava, e o menino comia. Ele inocente do encargo, do fado que trazia. Por certo se abstinha de ocupar a mãe aflita; doída de presságios... Sofrimento... Maria devia saber: nunca antes do tempo...
         Nossa Senhora das Lágrimas! Virgem da Abadia! Lava meu coração!

         Depois de ajudar Maria, São José buscava gravetos, para acender a fogueira, temendo uma noite fria. Cobria de palha o berço, para aquecer a criança, porque o que lhe restava era cuidar da vida. Não tinha outra lembrança, senão a fuga do Egito, para salvar o Bento filho... O carpinteiro nem tinha madeira para acolher o Sagrado Jesus.
        A Sagrada família se abrigava no Presépio, morada das criaturas... Tão efêmera tarde que a agonia encobria o que estava por vir. Nossa Senhora da Esperança acaricia os anéis dos cachos da criança e sente a coroa de espinhos! Nossa Senhora das Chagas! Nossa Senhora do Livramento! Maria devia saber: nunca antes do tempo...

        Nossa Senhora bordava... Nossa Senhora cosia... Bordava estrelas na noite enquanto ninava o menino na humilde estrebaria. Mãe intemerata enquanto trabalha, vigia... A jovem mãe confiava mudar o destino atroz:: quase sem voz pedia:
        - Senhor, ele é apenas um menino!
E Deus respondia:
       - A humanidade o algoz! Maria!... Devia saber: nunca antes do tempo...
        Mas ela já sabe da cruz!
        Sim, a pobre mãe já sabia... Nossa Senhora das Dores! O calvário antevia...         
        Vi três Reis Magos com presentes confiados a Maria. Incenso, mirra, ouro que a jovem recebeu na lapa escura. E não tinha onde guardar, nem sabia a serventia. E tudo trocaria pela certeza de paz e da vida do filho.
        São Francisco era o pastor que mansamente conduzia os bichinhos: o carneirinho balia, o boi e a vaca mugiam e o cachorro latia. Ele ordenava, com aptidão e bondade e os bichos se calavam, para não assustar o menino. E os animais viviam para servir de agasalho e companhia. A cigarra ciciava, o grilo guizalhava, o beija-flor trissava. O menino balbuciava e ria....
        Como toda mãe, lá ia Nossa Senhora cozendo, limpando o mundo. E o menino crescendo... Lá ia Jesus Cristinho, brincando pelo caminho, colecionando pedrinhas, como qualquer garotinho... Ia o pai, ia também a mãe e o pacato jumentinho. Lá ia correndo livre e perseguindo os cabritinhos... Mas, tudo é muito igual para toda criança na infância. Calma, Maria... Nunca antes do tempo...

         Eu vi o dia chegar, mais claro que os outros dias... A Senhora ao acordar, rezava a Deus e pedia:
       - Senhor, ele é apenas um menino!
        Saía a colher florezinhas pra enfeitar o caminho, por onde iria passar o Sagrado Jesus. Tentava suavizar as feridas, o coração alanceado e o peso da cruz, que no futuro viriam.
        Encontrei com Nossa Senhora, na beira do rio. Via que andava apressada a procurar o menino, que distraído corria e que inocente crescia. E só sua mãe já sabia.
Água vai, água vem cristalina das terras de Belém, lavando os pés do pastor... Jesus Cristo, o Salvador!
        Maria, agora é o tempo; o tempo da sua dor...
        Nossa Senhora dos Tristes... A que sempre me sorria, consola em mim sua agonia!


 Valéria Á. Cerqueira

* No ano de 1223, São Francisco, tentando reviver a ocasião do nascimento do Menino Jesus, festejou a véspera do Natal com os seus irmãos e cidadãos de Assis na floresta de Greccio. São Francisco começou então a divulgar a idéia de criar figuras em barro que representassem o ambiente do nascimento de Jesus. Assim criou o Presépio.

quarta-feira, 26 de outubro de 2011

A Devoção das Palavras

                                                   Intervenção na Imagem- Arte Digital por

                                                    Valéria A. Cerqueira



            Clarice, a poeta que vivia “Perto de um coração Selvagem” tinha uma Flor de Lis, cravada no peito, (Lispector) e a poesia à flor da pele; Clarice era possuída pelo “demônio de escrever”. Desnudou-se sem preconceito no livro A Descoberta do Mundo: “Eu disse certa vez que escrever é uma maldição. (...) mas uma maldição que salva. Salva a alma presa, salva o dia que se vive e que nunca se entende a menos que se escreva. Escrever é procurar entender, é procurar reproduzir o irreproduzível, é sentir até o último fim o sentimento que permaneceria apenas vago e sufocador. Escrever é também abençoar uma vida que não foi abençoada”.
            Nietzsche afirma: “De tudo que foi escrito, só gosto daquilo que é escrito com o próprio sangue. Escreve com sangue e aprenderás que sangue é espírito”.
            Assim, escrever com sangue é buscar com arrebatamento e voracidade na essência da alma a Verdade que nos liberta de todo sentimento. Escrever exige doação, entrega absoluta e muita flexibilidade. Espírito maleável, tão natural quanto a do galho que se verga ao vento, ou da água que contorna as pedras do oceano. É justamente na flexibilidade de ideias, conceitos e pré conceitos, que podemos extrapolar nossas palavras através da arte, realizando o milagre da transfiguração do sangue em signo, símbolo maior da própria Vida.
            Não é importante explicar ou definir poesia, porque isto limita o seu processo criativo. Criar é ver na parede vazia e transmutar janela, quadro, cadeira, candelabro sob as águas da imaginação, sob a luz inebriante do mistério, do novo sentido. Não há que definir como foram parar no espaço. Saiba o bastante: que a poesia existe para amansar as feras, dominar-lhe as garras e os dentes e fazer companhia para qualquer solidão... a sua ou a que não é sua... Quando pronta, as palavras encantatórias fazem companhia aos outros.
            
            Embora em sua gênese a língua seja oral, a palavra escrita, costuma usurpar-lhe o primeiro papel, fato salientado por  linguistas como Saussure, Meillet, Hjelmslev, o que foi objeto de Fetichismo de la Letra do linguista filólogo Rosenblat. O espírito passou a corporificar-se na letra. Se nos primórdios o terrível destino (fatum) era o que estava dito, há muito, a fatalidade é para o homem “o que está escrito” Maktub! Estava escrito! Dizem os árabes.
            Ao lado da devoção da palavra, a Antiguidade conheceu o culto do silêncio, com os seus deuses Hórus, no Egito; Harpócrates, na Grécia. Silêncio e palavra... A palavra é o instrumento do escritor; fórmula de magia e de encantamento. Pela palavra fomos criados, pois Deus formou o mundo com o seu poderoso Verbo. Faça-se a luz!... Faça-se o homem!... (Gênesis)
            “Com a palavra criaram-se e destruíram-se mundos, selaram-se destinos, elaboraram-se  ideologias, proferiram-se maldições e blasfêmias, expressaram-se ódios... Mas com ela, e só com ela, em tantos e desvairados povos, falou-se de amor, consolaram-se as aflições e elevaram-se as preces a Deus” (...) “A palavra é um gesto e a sua significação um mundo” disse Merleau-Ponty. Como a “Estrela da Manhã” de Manuel Bandeira, ela poderá apresentar-se aos nossos olhos... Pura ou degradada...”(Celso Cunha in Sob a Pele das Palavras). A divindade da palavra é um fato universal”.
            A poesia é! É verbo...É criação. É tudo, é isto, é aquilo, é nada, é muito, é o suficiente, é aprendizado, é ensinamento, é vida, é morte, é súplica, é conselho, é oração, é delírio, é lucidez, é insânia, é alegria, é dor, queda e exaltação... É a deusa dominadora do poder mágico do verbo humano. A palavra edifica, a palavra abate e aniquila.
            Estamos sempre a esperar, no silêncio,  a grande musa e os seus sortilégios, para que jorrem palavras em nossas mentes; No Egito havia a divindade Ísis, (correspondente a Deméter na Grécia). Uma inscrição encantatória declara: “Eu sou Ísís, a deusa, a senhora das palavras de potência... as palavras cujas vozes são Magia.”  
            Abençoados Poetas!... 

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Perguntaram-me como era escrever.
Disse que não sabia,
Apenas fazia.
Era assim como espremer
O cérebro, o coração,
Até sair sangue...
De onde escorre a alma, a luz
De uma exótica partitura.
São sons, são sentimentos.
Não adianta explicar,
Há que fazer.
Recolher as emoções todas num copo,
Como quem pega
Água para beber.

     Valéria Á. Cerqueira - 
Em: Sentimento Disponível
      
            *Dia do Poeta- 20 de outubro

terça-feira, 11 de outubro de 2011

Quem mordeu a maçã?




                 Da maçã do Paraíso ao império da Apple, pense diferente! 
        Muita transformação se deu, através dos séculos, em matéria de comunicação e símbolos. Para trás ficou o conselho maléfico da serpente à incauta Eva, para que ela desafiasse o Criador; que Eva comesse a maçã, adquirindo desta forma todo o conhecimento, até então negado, sob pena de perder o paraíso... Assim ela fez e a consequência disto todos sabem... Já imaginou se tivesse pensado diferente? Mas, cumprindo ou não os planos divinos, ela também quebrou um paradigma e cá estamos nós. Ao longo dos séculos vimos Newton, a maçã e a lei da Gravidade; A Bela Adormecida, a mordida na maçã, o sono e a espera do beijo do príncipe... E inúmeras quebras de paradigma. Até se chegar a Apple de Steve Jobs, muita maçã  do amor se comeu no parque de diversão.
        Apesar de tanta tecnologia, denunciando o inquestionável avanço da Humanidade, em matéria de conforto e vida prática, estou incomunicável por causa da greve dos correios. Não fosse a internet, não saberia a quantas anda o mundo. Desde então, não recebo nenhuma carta ou jornal. Hoje eu devo a minha inclusão ao mundo das idéias e da comunicação, a Steve Jobs. Uma incluída digital... Mas, antes dele,  não posso deixar de citar Alan Turing, que através de seus estudos de matemática pura, criou a teoria da computação e, não satisfeito, arregaçou as mangas e assumiu um papel central na construção dos primeiros computadores, com o seu protótipo Colossus, o tataravô do PC, este mesmo em que ora escrevo. O que falar de um matemático que venceu com cálculos as bombas de Hitler, decifrando as mensagens cifradas e localizando os submarinos durante a guerra? No mínimo, ele merecia uma estátua no Vale do Silício, um enterro com glórias de herói; seu nome deveria virar nome de universidades... Mas não virou, porque Turing quebrou um paradigma dito moral e foi condenado por "condutas de imoralidades” por ser homossexual. Ninguém sabe quem foi Alan Turing e o que representa no universo da computação. Turing foi um gênio de raciocínio brilhante, que, por preconceito contra a sua sexualidade, foi jogado cruelmente ao ostracismo. Não conseguindo suportar a perseguição, a castração química imposta e a condenação pública, Turing matou-se mordendo uma maçã envenenada com cianeto. Por isto escolheu  a morte!
        Graças a Alan Turing e ao renomado Steve Jobs, o fundador e ex-presidente do Conselho de Administração da Apple, eu ainda estou conectada ao universo das informações por um pequeno artefato na minha mesa. Outros podem até levar um computador na bolsa, ou no bolso. Perfeccionista, criativo, inovador e ousado, Jobs ajudou a tornar os computadores mais práticos e revolucionou a animação, a música digital e o telefone celular. Não bastasse isto, Jobs quis muito mais e, com a sua genialidade marcou o mundo da tecnologia ao apresentar produtos como o  Macintosh,  o iPod, o iPhone e o iPad. Para os mais jovens o mundo é quase inconcebível sem todo estes aparelhos eletrônicos. Eu, conservadora, afeita aos papéis, agora me rendi ao conselho de Jobs: - Pense diferente! Cedi às tais inovações, uma vez que os Correios me deixaram sem opção.

        Steve Jobs contribuiu não só para o avanço da tecnologia, mas para o progresso da Humanidade, dando continuidade à concepção primeira do que idealizou Alan Turing. Com suas idéias deu-se um passo gigantesco, a partir de uma novíssima conceituação de computador, então exclusividade dos engenheiros... Ele acreditava que o mundo não se contentaria com máquinas feitas por engenheiros e para engenheiros, que ocupassem espaços gigantescos. Queria colocar as máquinas sobre escrivaninhas e as colocou no bolso. Concebeu máquinas que mudaram o cenário da computação "de garagem" que vinha se desenvolvendo nos Estados Unidos nos anos 70,  para o restante de nós, os que seriam os usuários domésticos, os que, naquela ocasião ele chamaria de loucos, desajustados, alienados e rebeldes. Ainda mais... Ele deixa um legado intocável. Muito há por vir, em conseqüência da fantástica quebra de paradigmas...
         Diante de tanta inteligência ele não se julgou superior aos outros. Compartilhou. Acreditou em uma idéia.... Em suas palestras era categórico ao afirmar: "Não fique preso pelos dogmas, que é viver com os resultados da vida de outras pessoas! Não deixe que o barulho da opinião dos outros cale a sua própria voz interior!" De apurado preciosismo Jobs criou um padrão de qualidade que jamais podia falhar. Do número de parafusos de um notebook à cor da letra do ícone do atalho do Google no iPhone, ou a curvatura das quinas de um monitor, tudo devia obedecer ao padrão Jobs de qualidade, a partir de sua visão holística: um modo de pensar, ou considerar a realidade, segundo a qual nada pode ser explicado pela mera ordenação ou disposição das partes, mas antes pelas relações que elas mantém entre si e com o próprio todo.
         Jobs não parou de trabalhar com a proximidade do fim. Seguiu até um mês antes   da morte, quando enfim deixou o cargo de executivo-chefe da Apple. Mesmo assim controlou as escolhas do que fazer com seus últimos dias. Conversou com investidores e com o grupo de vice-presidentes da Apple sobre a apresentação do iPhone 4S, que ocorreu na véspera de sua morte. Mas a maior parte de seu tempo destinou à família. Ele não queria desperdiçar um minuto, pois seu tempo na Terra era limitado e queria controlar o que fazia e quais escolhas ainda estavam disponíveis. Encarou a morte com serenidade e deixou projetos a serem cumpridos por seus sucessores. Assim, sua genialidade não se esgotou  e a missão ainda não está totalmente cumprida, pois Steve Jobs certamente aparecerá em tecnologias ainda mais inovadoras.
        Se Alan Turing mordeu a maçã envenenada, Steve Jobs, ao contrário, soube tirar proveito dela. Eu preferia que Alan Turing não tivesse ficado preso pelos dogmas, que é viver com os resultados da vida de outras pessoas! Gostaria que Alan Turing não tivesse deixado que o barulho da opinião dos outros calasse a sua própria voz interior! Mas Jobs, o homem de conselhos brilhantes, só veio depois. A maçã já estava mordida...

Valéria Á. Cerqueira

quinta-feira, 6 de outubro de 2011

Sob o ponto de vista...

                          Intervenção na Imagem - Valéria Á. Cerqueira

         A vida tem fragmentos de coisas comuns, como poeiras que repousam sobre um móvel. Aqui e em qualquer outro lugar, tudo parece igual. Imóvel parece que está  o solitário homem na sala... Sentado está o velho diante da televisão. Ora... Tudo é sempre possível quando nos lembramos de sonhar, ou se apenas respiramos. E, por ironia, parece que nos lembramos de sonhar, quando não mais dispomos de tempo, ou  temos poucas chances de viver com prazer.
         Há os que nunca imaginam outras possibilidades, senão a de continuarem sentados na cadeira da sala, respirando...
         O velho, sempre sozinho na sala, se desinteressa do que vê na televisão. Onde estão os irmãos, os filhos, a esposa, os netos? Chama por alguém e ninguém responde. Procura no bolso a bula do  remédio para hipertensão, e do spray para falta de ar; lê com seus óculos bifocais que escorregam na deselegante e enrugada curva do nariz. As letras minúsculas no papel escondem incontáveis males; afinal, tantos nomes difíceis, tantos efeitos colaterais. Melhor seria não ler... Se não sabe, não sofre. Advertências peremptórias: não tome remédios sem o conhecimento do seu médico! Ele deve se perguntar: - quem está aqui para me vigiar? Como se isto fizesse muita diferença. Farmacocinética... Ética... Parece complexo, mas esta palavra recorda-lhe o movimento do cinema... A tela da tv projeta o filme “Parente é Serpente”, do cineasta italiano Mario Monicelli. O velho se pergunta, num lampejo de lucidez:-  Por que o cineasta de tantas comédias desistiu de viver?... Será que não achava mais graça na vida? Quando  foi que parou de rir dela? É, perdeu a graça de questa vita maledetta! Vita maledetta!... Não, melhor não querer saber, por que motivo ele se jogou da janela de um hospital na Itália, aos 95 anos. Melhor não pensar nisto! Teve suas razões, o poverello... Quem sabe foi culpa dé algum parente serpente, ironiza, pensando em si mesmo...  Prudente é deixar o coração tocar por si, no ritmo que melhor encontrar e seja lá o que Deus quiser. Escrita sombria ou brilhante em papel fosco, ou um pensamento que evoca Inglaterra e afasta a Itália, não se sabe a razão, enquanto olha perdido, palavras mínimas na bula, que indicam sintomas indecifráveis... Apoplexia... À mente lhe vem Cinema, Geografia! Inglaterra! - Nunca estive lá... Corticosteróide, que diabos será isto? Asteróides cortam o universo. Devia olhar mais para o céu... Um corpo celeste? Um satélite? Pode cair em qualquer lugar. Quando morrer, quero ir para o céu... Melhor tomar o remédio de uma vez, porque há uma confusão mental a ponto de explodir as têmporas. Esta falta de ar não combinaria com Londres...
          Uma investigação envolvente de um lugar desconhecido, da mesma forma que não conhece o campo minado da mente e da alma, que nunca sabe onde pisa, desce com o comprimido pela garganta. Uma bula de remédio... anúncio de muitas impossibilidades de viagens futuras, porque, se tivesse dinheiro, iria sim para a Inglaterra. Mas agora, cardíaco, com falta de ar, abandonado pelos parentes, tudo ficava mais difícil. Viajar de avião? Não teria mais tempo. Por que não pensou nisto quando era jovem? O que tinha feito com todo os seus dias? Dinheiro tinha até como arranjar, se o sonho de conhecer Londres o seduzisse continuamente, e não tardiamente. Mas, saúde?... Não tinha como resolver. Ou tinha? Matar-se aos 95 anos, quem diria? Pobre Monicelli de sua Itália. Mas eu queria Inglaterra... Uma Inglaterra é tão envolvente e humana, quanto  a convincente sensualidade de Copacabana cheia de corpos suados e seminus. É uma investigação coordenada pelo preço da ambição e o desejo de tudo conhecer. Preço da passagem pode até ser parcelado em suaves prestações, mas sonho não! Sonho é para ser inteiro. Hoje já não poderia mais pensar em arrumar sua bagagem e pegar um avião. Cardíaco!Foi o que  sentenciou o médico implacavelmente, sem ao menos olhar para seus olhos. Aliás, há muito não o olhavam de frente.
         Humanos, como qualquer um de nós, sábios, loucos, líricos, desiludidos vagam pela noite, ou permanecem imóveis diante da  televisão. Todos com sentença  de dias contados. Os estudantes, os mendigos, os empregados, os desempregados, os músicos e as professoras... Parece que a semana pode ser tranqüila, porque a segunda-feira acorda quase silenciosa, rente ao sol. O velho toma um remédio para a pressão à noite e outro pela manhã e segue a vida, dormindo diante da televisão, como se nada tivesse mudado fora dele. Mais uma noite, mais um dia, mais um filme. Por dentro, mais uma desilusão e muita falta de ar. Quem diria, 95 anos... Ninguém se lembrou.

Valéria Á. Cerqueira

quarta-feira, 5 de outubro de 2011

Carta Antiga ou Pequeno conto Anacrônico

Intervenção na Imagem por Valéria Á. cerqueira

         

                           Rio de Janeiro,


                

         Caro amigo,






Esta semana acordei mais antiga que sempre. Andei recolhendo saudades, antecipando uma nostálgica sensação. A alma passada ao papel... Na sexta-feira fui convidada à “Casa de Machado”. Exatamente, à casa do nosso querido Machado de Assis. Recebi o convite e fui logo contar a novidade ao meu vizinho, também de apurado gosto pelas letras e a todos meus familiares. Convidavam-me e, melhor ainda, eu poderia levar uns poucos amigos. O coração já havia pressentido com prazer as recordações de uma cidade antiga. Decidi ir sozinha, pois o amor era egoisticamente meu.
A respeito do convite e do seu remetente, lembraram-me os Accioly, recentemente vindos de Engenho Novo, que muitos bairros retêm sua alma. Sejam sons, pregões, vozes das ruas. Ele, quando escreve, transmite a impressão auditiva do Rio. Freqüentemente, pelo então imperial Rio de Janeiro, apreciava contrastes na natureza e nos homens, transformando a vida em arte, recolhendo minúcias. Lembro-lhe, caro amigo, que Machado observava as belezas no tempo, porque: “ ... muitas vezes, uma só hora é a representação de uma vida inteira”. Sempre gostou de caminhar, logo depois do jantar, pelas bandas de Laranjeiras, Glória, Praia do Flamengo e Botafogo, indo a pé até o Centro da cidade, atendo-se a pequenos detalhes... Afirmo que, entretanto, “ nunca o vi” por estes lados. Verdade é que pouco ando pelas ruas. Machado fazia planos de mudar-se para Cosme Velho.


Minha vizinha, D. Antea, assegura-me que sua mãe, cantora lírica, o conheceu, em “carne e osso”. Machadinho, como intimamente o chamava, foi vê-la em um recital, no Teatro Lírico e, em outra vez, fez questão de ouvi-la num concerto no Teatro Phoenix... Pareceu-lhe abatido, agastado, naquela ocasião. Ela acredita dever-se tal abatimento ao desagrado que ele tinha com as corridas de touros, no Rio de Janeiro. Garante ter-lhe confessado não gostar desse tipo de espetáculo. Preferia “ ver correr o tempo e as coisas” (...) A vida fluminense vivia de óperas, corridas e pleito eleitoral. Segredou-me que hoje nosso querido Machado se sentiria melhor, em face de uma nova sociedade. O moço se sustentava em genialidade literária. Árdua luta, explica-me ela, pois atingira o oficialato de gabinete de ministro, era membro do Conservatório dramático, oficial da Ordem da Rosa e estava no auge de sua carreira como Diretor de um órgão público. Contudo em nada mudara. Pura simplicidade. Tudo levava a crer que ele iria mais longe... Confidenciou-me ainda, a velha senhora, que ele andava metido num movimento, não sabia ela de que, mas estava sempre acompanhado de outros senhores, alguns sisudos, outros falantes, circulando sempre pelos lados da Travessa do Ouvidor, na redação da Revista Brasileira e na Livraria Laemmert. Estava às voltas com amigos, livros e falatórios, muitos falatórios... Um molequinho, que fazia serviços para ela, disse que o ouviu falar em uma tal “ Academia”. Exatamente... “Academia”, mas não soube dizer mais nada...
O jornal “A Marmota Fluminense” abriu espaço para o incomparável escritor. Como você sabe, igual importância tem para mim “ O Imparcial” de Rio Pomba, do nosso amigo Francisco Vieira de Siqueira, que acolheu minhas crônicas. Gosta do que eu escrevo e abriu-me ao gosto dos leitores. Aliás, o Sr. Francisco já havia prometido apresentar-me aos amigos editores, quando viesse ao Rio. Machado, como eu, apreciava jornais: “a verdadeira forma da república do pensamento(...), a literatura comum, universalmente aceita”, afirmava.
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Chegando ao Petit Trianon, fui recebida por vários jornalistas. Assegurou-me o Sr. Adolfo, presidente da “Folha Dirigida, que, apesar de Machado ter saudades do Pedagogium, do Silogeu, encontrava-se “ radiante” com a nova sede e gostava de “visitá-la”, “ conhecê-la” bem, o que fazia com muita freqüência...
Senti-me feliz em entrar naquela casa... O coração estremeceu diante dos manuscritos daqueles admiráveis poetas, que tanto amo e, apressado, recolheu memórias de aulas de literatura, quando então ouvi falar deles. Sim, lá estavam os meus amigos a esperar-me, cansados, com uma saudade centenária, com românticos sorrisos, embora não estivessem acostumados a muitas visitas femininas. Ao contrário de serem desajeitados, mostraram-se muito gentis e hábeis em seus galanteios.
Fechei os olhos e, no meu sentir, lá estava ele, o fundador da Academia Brasileira de Letras, a sorrir para mim. E, embora eu soubesse que todo seu amor fosse por Carolina Novais, senti meu coração bater mais forte. Sei que “ vive e morre por Carolina...” Ele veio ao meu encontro, ladeado por Bilac, Inglês de Sousa e Artur Azevedo, todos alinhados em suas polainas, luvas e casacas, com seus bigodes impecáveis e seus cumprimentos discretos. Beijaram-me as mãos, fazendo discreta e clássica reverência... Sentamo-nos e falamos, falamos muito. Depois de longa conversa, risos e algumas poesias, que Machado declamou a meu pedido, Bilac lembrou-se de um compromisso. Despediu-se de todos escusando-se. Excepcionalmente não ficaria para o chá, mas deixou claro que leria minhas poesias e crônicas e, se eu desejasse, nos veríamos outra vez num café da Ouvidor.
Às cinco horas, pontualmente, ofereceram-me sequilhos, uma chávena bem aquecida de chá de laranja e canela, e uma variedade de salgados e doces. Experimentei alguns e comentei sobre a linda porcelana, a beleza da casa, a conversa agradável... Machado retribuiu os elogios e, ao final, se eu não me opusesse, me ofereceria um “calix” de licor. Apreciamos o chá em companhia dos outros escritores e muitos deles quiseram saber quem era aquela mulher que estava durante todo o tempo ao lado de Machado. Argüíram com os olhos e lábios se seria ela a tal “Helena” de que tanto se falava.


Machado, entre tantos assuntos, se queixou muito da falta de iluminação da cidade e do excesso de mosquitos... Penso que já estava a sentir os desconfortos do “uso imoderado dos olhos” e de lentes incorretas, do delicado “pince-nez”. O escritor, para atender às solicitações do ofício literário acumulado com o modelar burocrata vivia a “ vertigem ocular dos tempos presentes”. Sofria com os olhos, confidenciou... O Dr.Hilário de Gouveia tinha bastante trabalho. Miguel Couto, seu médico, cuidava do resto do corpo. Carolina, luz dos seus olhos, freqüentemente era vista na varanda do sobrado, no Catete, lendo e fazendo anotações, amorosamente, enquanto ele ditava. Enfim comentamos sobre nosso fascínio por jornais...


Machado saiu apressadadamente, tão logo a reunião terminou. Tinha ainda que visitar seu editor na Rua do Ouvidor, o Monsieur Garnier, que havia publicado seus “Contos Fluminenses”. Levava-lhe um livro novo. Desejava saber se estaria interessado em sua mais recente obra, o “ Dom Casmurro.” Depois disso precisava ir correndo lá para os lados do Largo da Carioca, onde o esperava sua doce Carolina. Deveria acompanhá-la no bonde, pois não gostava que andasse sozinha. Falou-me que ela fora experimentar um vestido novo em sua modista, e de lá passaria na Rua da Alfândega, para comprar um par de luvas e um novo chapéu. Iria presenteá-la, para que estivesse ainda mais bela, na grande recepção, no próximo sábado, em casa dos pais de um novo amigo seu, o jovem Alberto da Costa e Silva, rapaz inteligente que conhecera recentemente na chácara de Joaquim Nabuco. Afeiçoou-se a ele naquela ocasião, assim que trocaram algumas idéias, pois o jovenzinho estava muito interessado em estudar culturas africanas. Viu logo tratar-se de moço de futuro promissor. Cochichou-me o querido Machado de Assis, em segredo, que se o rapazola continuar assim tão dedicado às letras, acabará sendo Embaixador e, quiçá, Presidente da Academia Brasileira de Letras. Despedimo-nos prometendo um próximo encontro para o “ chá das cinco”. Afirmou-me ele, tão logo “voltasse” à Academia, iria apresentar-me o brilhante rapaz.


Partiu sozinho depois de beijar-me as mãos, delicadamente, sem perceber tristeza e lágrimas em meu rosto, correndo pela rua vazia, assobiando baixinho, na expectativa de tomar o bonde e ir ao encontro de sua amada.


Assim, caro amigo, narrei-lhe o ocorrido em “Casa de Machado”. Escreverei para o querido colunista Nicolau Alves, e a Carmen Marini, diretora de “O Imparcial”, para que publique o honroso convite.


Brevemente escreverei a Drummond.


Machado fez recomendações e elogios a todos.

                 Valéria Á. Cerqueira

quarta-feira, 21 de setembro de 2011

Rota para Si

                                    Intervenção na Imagem- Arte Digital  de Valéria A. Cerqueira



                       A moça seguiu para a rodoviária com uma dor de partida. Dor apertando-lhe os olhos. Pesavam-lhe tanto que não podia suportar lágrimas novas... Enfim elas se perderam desviando-se pelo nariz, apertado no mínimo lenço. O destino ia se inscrevendo sem que ela pudesse saber por onde. Parecia ser mesmo um ano de lágrimas e chuvas afogando-a. Ela era uma mulher que chamava atenção pelo que vestia, pela cor dos cabelos de indefinidos caramelados, como se pudessem ter um aroma de chocolate e cravo. Podia-se constatar, caso alguém se sentasse perto dela, que era assim mesmo o seu perfume. Atraía inevitavelmente, para que a vissem pelo tanto de acetinado e natural que tinha no rosto maquiado, com óculos escuros desviando a direção do olhar oblíquo e a própria tristeza. Também ela era tragada involuntariamente pela renovadora investida da alma, no ímã de gente tão desconhecida e simples. O ônibus oscilava entre gramas, poças d’água e viscosa lama, sacolejando pessoas com cor de terra, cheiro de capim e fumo adocicado. Cheiro muito bom e limpo.
                    A estrada de barro escrevia a distância do lugar, pelo que tracejava nos cafundós, em casinhas de pau-a-pique e cruzes de papel crepom colorido marcando os domínios cristãos. Todos ali, tementes a Deus, porque nasceram pelo batismo e foram criados para viver como manda a amada Igreja; assim persignavam-se pedindo a tutela do Nosso Senhor Jesus Cristo, contra os desmandos do diabo. Mas, nem por isso deixavam de ser felizes com o que tinham de bom para pecar nos finais de semana e, se pouco houvesse, mais fácil para viver, sem peso para carregar nos sábados. Mas tem que ter tempo e vontade para não se esquecer da missa domingueira.
                    De segunda a sexta o dia podia amanhecer muito bem antes da hora que não fazia diferença carregá-lo. Mas final de semana eram levezas de fretes para aquelas bandas de casa de dança, porque o bom era moer as costelas nas danças e nas coxas delas. Nos outros dias, era obrigação mesmo estar de pé às cinco, por conta do trabalho e da natureza que sempre soube o que fazer; era mais pontual e condescendente seguindo o canto dos galos de três em três horas do que relógios e sinos estridentes, até o sol avisar com ruídos do dia a insensatez das aves e homens insones. Nunca soube em que horas os galos dormem... E se dormem... Nunca soube “por quem os sinos dobram.” Ao menos naquela cidade, bem pouco tempo atrás...
                    A alegria recente ao vislumbrar o dia é leve e não ocupa espaço. E, o que não falta é espaço dentro do ônibus que carrega uns, descarrega outros, aqui e ali, empilhados na estrada, para todo lugar onde há filho de Deus esperando debaixo de sol ou de chuva. Todo dia assim, motorista e trocador mensageiros, entregando embrulhos, buscando encomenda, arrastando a parteira lá pelas bandas do córrego, onde tem criança esperando para nascer. Antiguidades e beleza de transporte do interior, em total comodidade para meu coração, tornando as emoções práticas e mais fáceis de suportar. Repetem trajetos, como remotas tropas de bandeirantes, transportando animais de pequeno porte, desde que bem acomodados em sacos de estopa, para não incomodar os passageiros. E o bicho tem que vir bem limpo para não deixar cheiro no veículo, exige cauteloso o motorista que não pode deixar de atender o pedido dos produtores de ovos e frangos. Todos compadres.
                    O motorista arriscava curvas, conversas de viagens e elogios para cada moça que entrava no ônibus, primitivamente sedutor, como eram os homens simples diante de mulheres jovens, sem recursos artificiais. Ele, eternamente ao volante, imaginando saber dirigir a própria vida, cantava alegremente um rock, mas não sabia inglês, ou o roteiro para outros países. Nem mesmo a Rota 66. Tanto faz... Ou nenhuma diferença faz. O máximo que alcançava era Juiz de Fora, ou além, Além Paraíba, talvez... Um homem para muitas mulheres, imaginava-se ele no comando da condução.Condutor da liberdade utópica. Tal qual um marítimo: uma mulher em cada país; mas nunca saía dali.
                    Também as moças rurais não sabiam quanto eram belas... Eram todas muito semelhantes no jeito morno de arrastar os sorrisos, as bocas sem maquiagem, os embornais para compras na cidade mais próxima. Os corpos atarracados, os braços fortes, a pele queimada denunciando a vida dura e a vida doce que levavam... Só o corpo tinha noção do peso de algumas tarefas, porque o espírito pouco questionava, ou duvidava, ou desconfiava. Confiavam em Deus e pronto, era o que bastava para viver: a vida corria bem. Todos esbanjando esperança e certeza nas coisas divinas. Todas as preocupações eram entregues a Deus, que sabe o que faz. Não tinham mesmo o que perguntar sobre a existência, tão natural quanto a vida das outras criaturas, porque seria duvidar de Deus. Homem temente confia...
                    Arrumavam-se só mesmo para ir até a cidade, porque no mais ficavam metidas em trejeitos do dia-a-dia, mesmo descalças, nas roças, nas criações, colheitas e sonhos de uma vida diferente que viam nas novelas. Até supunham coisa mais fácil que amanhecer no cabo de enxada para ajudar pai e mãe, mas isto era coisa de se viver em cidade.
                    A moça deixava para trás as mulheres de sua casa, muito sozinhas na vida. Agora deixava a mãe sem o pai, a irmã sem o marido, a tia sem o sobrinho. Deixava o irmão cuidando de todas. Todas para cuidar do irmão... Assim ela partia, absolutamente só, como se houvesse uma mágoa pesando sobre cada um deles. O ônibus vinha de  Silveirânia e fazia baldeação em Rio Pomba. Ali uns diziam que era o fim do caminho; outros diziam que era o começo do destino, no vaivém de abraços banhados a lágrimas e a risos do interior de Minas. O destino de uns era resolver problemas, o de outros era visitar quem nascia, ou despedir-se de quem morria.... Uns abandonavam, outros acabavam de se conhecer; uns compravam, outros vendiam, e tudo se resolvia na paradoxal vertigem das estradas, onde se apalavram negócios e se promovem encontros. Amores, desamores, paixões e ódios no meio do caminho, ora de chão batido, ora de asfalto, que servia à ida, que servia à volta. Quem sabe nem isso, quem sabe nada, só o chão, o capim rolando vertiginosamente onda para cima e para baixo dos olhos dela. Quem sabe a ilusão sem matizes da poeira que o ônibus levantava, no imenso pasto verde com vacas esparsas, aqui e ali. Infinitamente belo o imenso vazio dos dois lados, plenos de coisa nenhuma, porque a natureza é o bastante. O mais nos aprisiona ou nos enche a alma, porque as chuvas deste verão não deram trégua, nem as lágrimas de inverno em torno de paisagens.
                    A moça entrou vislumbrando uma fileira de lugares vazios e preferiu assentar-se do lado de um senhor de aparência mais urbana que o resto dos passageiros. Assim, tinha diante de si apenas pessoas do lugar para lhe prender a atenção e tirava o intruso do seu foco. O homem agora do lado era o que já estava acostumada a ver e o que havia de mais distante e comum. Vinha cheio de vícios de cidade grande, com seus atributos afetados comprados em “shoppings”. Foi esta possibilidade, de o estranho ser um citadino, que a fez sentar-se ao seu lado, antes que tardiamente se perdessem as imagens. Assim podia esquecer o quanto ela mesma tinha mudado, equiparando-se a ele e ao tênue feixe de luz, em poltronas paralelas. Um ao lado do outro como estranhos vizinhos de apartamentos... Estavam acostumados a isto. O que precisava agora era ver gente do lugar, para se ver, comprovar como tinha sido ontem, quando sabia entender o sotaque molenga e o aroma de café moído na hora.
                    A moça, em confirmação ao desassossego alojado no peito, pôde perceber que a estrada não levaria a lugar nenhum, por mais que avançasse. Era uma ida sem destino, sem ninguém a esperar. Poderia ficar para sempre no meio do caminho, porque nem futuro ela concebia longe da mãe, dos irmãos, da casa, das cinzas que ficavam.
                         O caminho está... A condução vai e ela  chora,       
            enquanto os sinos dobram...

                   Valéria Á. Cerqueira 
                   In: Arte & Fato

quinta-feira, 25 de agosto de 2011

O Cronista

     Arte Digital: Intervenção na Imagem

Valéria  Á. Cerqueira



        Eu sou uma pessoa que não chora. Ou melhor, nunca em público, só mesmo bastante longe de qualquer olhar humano. Ou quando o olhar humano já deixou de existir. É que me habituei a isso, desde que fui trabalhar na agência que cuida dos últimos instantes do sujeito. Caso contrário choraria o tempo inteiro e espantaria os meus fregueses. E depois que arranjei esse trabalho, vejo esta vida assim, resumida na morte; escondido eu choro. Na frente dos outros seria a desgraça total, capaz de arruinar qualquer reputação de durão, construída durante anos a fio. Pelo visto sou eu, a princípio, mais a imensurável mágoa de ver o fim tão de perto. Ver através de quem conheci e amei. Diante do sofrimento foi que me decidi parar de chorar na frente de outros humanos. Há coisas fantásticas, não há? Uma delas é decidir parar de chorar. Entretanto choro perto dos cachorros, mas distante dos homens; não sei por que os dois me comovem tanto.
       Vai-se ao chope de final de semana, para ver a balada de moços e moças; vai-se à praia, ao cinema, ao shopping. Vai-se a todos os lugares. Pois eu prefiro estar em casa recolhido. Lá fora ouço barulhos, que põem toda a gente a saltar. A mim não, que sou tímido. Pouco ou nada se ouve com aquela música feita para explodir o crânio.. Eu não me entusiasmo, já não suporto tanto tais ruídos. Meus ouvidos padecem, quando distantes do meu local de trabalho. Lá, sim, constante bem estar. Ser, ou não ser... Este verso tem ecoado na minha cabeça nos últimos dias. A vida é curta demais, para perdermos tempo com jogos e indecisões, ou barulhos ensurdecedores... Ou é, ou não é. Agradável ou desagradável. Diferentemente disso, não há o que fazer. Antigamente eu era capaz de falar ininterruptamente, durante eternidades, sobre tudo e sobre nada, com qualquer pessoa, inclusive aquelas com tendências esquizofrênicas. Eu gostava de falar muito... Agora que conheço os esquizofrênicos, tenho que aproveitar todas as oportunidades para mostrar que fico sempre a ouvir silenciosamente, durante horas e horas, todos que encontro; ainda mais quando estão condoídos e enlutados. Hora em que falam mais e que precisam que alguém os ouça, sem restrições.
       Agora estou bem melhor; agora escuto muito mais, falo muito menos... Ouço o síndico, o porteiro, as namoradas dos amigos, a prima da tia da vizinha e todas as pessoas que a dado momento partilhem o mesmo espaço comigo. Todas precisam desabafar e eu ganharia um bom dinheiro se cobrasse para ouvir.
       No meu tempo de infância as Igrejas estavam sempre abertas. O sujeito entrava, falava diretamente com Deus, desabafava... Depois disso voltava aliviado para a vida. Agora, não! Não se vê mais uma Igreja disponível. Nem mesmo padre com tempo para ouvir. Sou o ouvinte de todos, mas poucos querem me ouvir. E isto não augura nada de bom para a minha vidinha, não augura não. Será que estou condenado a passar os restos dos meus dias com quem não tem resposta para me dar? E há dias em que tais tormentos são ainda mais verdadeiros. Dei-me ares de cronista, exatamente porque não tinha com quem falar; ninguém disposto a me ouvir. Passei a ter gosto profundo por casos de pessoas comuns; a crônica de cada um, que à minha alma chega, me faz indefeso para contestar o que falam a seu respeito. Absorvo um comentário leve e breve sobre algum fato do cotidiano. Fico comovido; e como já disse, às vezes choro escondido. Diante dos cachorros sim; jamais diante dos homens. Depois disso escrevo algo para ser lido enquanto se toma o café da manhã. O motivo de certas confidências, na maioria dos casos, é o pequeno incidente; coisa de pequena monta... A notícia em que ninguém prestou atenção, o acontecimento insignificante, a cena corriqueira. Nessas trivialidades, o que me surpreende é a beleza, a comicidade, os aspectos singulares dos quais eles não se dão conta. Mas eu estou atento a tudo. O tom certo de uma história surpreendente está onde menos se espera; é como "uma conversa aparentemente banal", entre uma baforada de cigarro, uma receita de remédio, a espera de um troco, a fila de idosos no Banco, um guarda-chuva que virou do avesso sob a ventania, um assovio na rua, um tiro na noite. Tudo fala aos meus ouvidos. Eu ouço. Eu pretendia apenas recolher da vida diária algo de seu disperso conteúdo humano. Visava ao circunstancial, ao episódico, que provavelmente não se repetirá. Ou, ao contrário, repete-se em toda casa, com todas as pessoas. Nessa perseguição do acidental, quer num flagrante de esquina, quer nas palavras de uma criança, ou num incidente doméstico, torno-me simples espectador. Mas, e eu? Onde fico se imagino que, enquanto observo a vida estou livre dela?
        O único tempo do meu dia que dedico a pensar sobre a morte é quando não ouço mais ninguém. Sempre observo o senhor tomando chope no bar em frente e me vem a ilusão de que ele também não se preocupa com ela. Ao menos com a própria morte. Pode ser até que pense em alguém que já se foi. Mas, é só e provavelmente por poucos segundos. Caso pensasse na sua própria morte, não estaria calmamente de pé fumando e bebendo seu chope. Ele o faz todos os dias. Daí todos os dias não pensar em si mesmo.
        O interessante é que do meu ponto de vista ninguém deveria representar a morte pelo fim, até porque se ouve muito o fato de a morte ser a transcendência do material para o espiritual, mas ainda assim, trabalhando aqui, é o momento único do dia em que não penso nela. A partir das conversas do fim de cada um é que me vem o começo de algumas idéias. Lidando com a morte é que eu penso na vida. E eu vejo que a vida é um espetáculo, como qualquer outro encenado no palco. Cada um tem seu personagem, mas passa a vida inteira decorando o texto. Quem afinal, veio para esta vida já sabendo o que fazer? Ninguém! Ninguém conhece nem o papel e nem o enredo. Por isto é que tudo tem que ser improvisado.
          Passam aqui em frente, muitas pessoas em companhia de outras. Antes de chegarem aqui perto elas riem e gargalham, mas quando mais próximas, todas param e olham para dentro; outras mais amedrontadas atravessam a rua. Preferem o outro lado da calçada. Muitas gargalhadas já foram interrompidas por choros e corpos, por velas e coroas, como se fosse o maior desrespeito continuar vivo depois da morte do outro. Tolice! A vida segue como se nada tivesse acontecido. Não há motivos para receios.
         O restante dos meus minutos, eu busco viver como se realmente eu não fosse morrer. Busco viver mesmo que seja diante de uma enorme conta de luz que não poderei pagar, ou andando apressado por essas bucólicas ruas que não me deixam nunca andar sozinho. Há sempre alguém vindo em minha direção, ou partindo comigo, para me fazer companhia. Busco levar sempre comigo a beleza de saber ouvir sobre a vida dos que precisam fazer confidências. Ainda assim, me pego sorrateiramente reclamando, às vezes, daquilo que pode ser consertado. No entanto, naquela funerária, as pessoas vão para resolver algo que não pode ser resolvido. Ao menos estou ali para que desabafem comigo. Se eu faço crônicas de tudo que ouço, paciência... Perdoem a minha indiscrição. Penso eternizar dessa forma os que acabam de partir. Histórias há... Muitas, para serem contadas. Há inclusive as minhas. São inúmeras no meu ofício... Nunca tinha me ocorrido que eu também sou personagem bufão desse teatro. Dei-me conta disto só agora. Sempre me imaginei o crítico da peça teatral. Vendo cada encenação, analisando, fazendo revisão, dando conceito. É... Um crítico teatral, era o que eu imaginava ser. Talvez o escritor da peça também eu pudesse desempenhar muito bem. Agora, vejo que não; sou figura dramática, como qualquer outro. Tenho meu papel para interpretar. Mais um pobre personagem saltimbanco desta vida.
       Uma vez fui encarregado pela família de colocar uvas no caixão de um chinês, conforme a tradição. Minha pobreza era maior que a veneração à cerimônia e o grande respeito ao meu ofício. Tenho orgulho do que faço e muita competência. Naquele dia, diante das uvas hesitei entre a responsabilidade e a curiosidade do paladar. Também me lembrei de minha mãe... Acho que pela fábula que sempre me contava:  “A raposa e as uvas”. Pois eu vi as uvas, lembrei-me de minha mãe... Achava um desperdício daquela iguaria ser levada junto com o morto. Levei para minha mãe que nunca tinha provado uvas e achou a fruta muito doce, muito refinada; declarou que uva é “uma coisa do outro mundo”. E não é que ela estava com a razão? Uvas... quase que iam mesmo para o outro mundo... Outra vez fiquei com os sapatos novinhos do defunto cliente, porque eu mesmo só andava descalço. É que tínhamos o mesmo tamanho de pé. Também achei que aquela coincidência de número de sapatos fosse um sinal celestial. Jurei para a família que os havia colocado no falecido que fez a viagem descalço. Ele que me perdoasse. Tenho certeza que, para onde ele estava indo, não precisaria deles. Ademais, rezei para que seu caminhar fosse sobre nuvens. Tinha certeza que não teria pedras para pisar, pela mansidão do seu semblante. Dava a impressão de homem generoso e despojado. Acatei a mensagem com a certeza de que o morto já tinha chegado ao céu e nem tinha precisado dos sapatos. É nos emolumentos fúnebres que encaramos a cruel realidade (sobretudo a nossa). Concluímos que nada é eterno, que as pessoas vão e por incrível que ainda nos pareça, não levam nada consigo. Nada do que levaram a vida inteira para amealhar. Nem mesmo os sapatos...
        A verdade a que cheguei até agora é que as pessoas realmente são muito frágeis, apressadas e confusas, e eu me incluo nessa louca ciranda de emoções. Também sou um homem triste. Reservo um tempo para chorar, mas só quando não há ninguém por perto, só o meu cachorro. E, quanto àquele sujeito do chope, imagino que ele se sinta melhor que os outros, ou mais tranqüilo, sei lá!... É o meu patrão! Deve pensar consigo mesmo que seu negócio é garantido; mais dia, menos dia, todos serão seus clientes nesta cidade tão pequena... Tem certeza absoluta de que vai ficar muito rico. Eu continuo como estou. Um coveiro cronista.

Valéria Áureo 
Publicado em: Entrelinhas Literárias- pags 362 a 369
Antologia Scortecci de Poesias, Contos e Crônicas Editora Scortecci 2011, lançada na Bienal do Livro de São Paulo, em 2012.

Leia: http://letraearteinsite.blogspot.com/

quinta-feira, 18 de agosto de 2011

Cálida Mão






                        
Há uma cálida mão
Repousando em meus curvados ombros.
Diáfano suporte,
Posto ali por sorte.
Translúcido afago e desejo,
Etéreo bálsamo dos anjos,
Que me ajuda a erguer o peso
E a suportar os anos.


Há horas que a mão é visível,
No sonho, ou nas minhas chagas...
Tem sempre um lenço acessível,
À mercê de minhas lágrimas.
Há horas que a mão é ventania,
Pronta a desfazer mágoas
E a dissipar melancolia.


Há horas que me toca suavemente,
Recompondo do meu rosto os escombros,
Fazendo-se uma brisa ardente,
Fazendo-se um abraço distante.
Fazendo-se amor constante,
Fazendo-se o olor das rosas...
Como se pássaro fosse,
Como se ave voando...
E me alivia as dores
Em permanência branda.

Há uma cálida mão,
Plena de candura, abençoada...
Repousando em meus curvados ombros,
Lado a lado aos meus.
Não sei se é a mão de Deus,
Não sei se a mão de minha amada.

Valéria Áureo
To: Vanessa B. M.
Livro de Poesias: "Sentimento disponível"