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segunda-feira, 29 de outubro de 2012

A Casa de meu Pai



 

                         Ilustração Digital- Intervenção na Imagem


A casa de meu pai tem um canteiro,
Onde eu transito irrompendo um bosque.
Tem toscas janelas e uma tranca de madeiro.
Minha mão toca a aspereza sem verniz,

Tátil relevo das palavras tantas vezes ditas...
Os ouvidos tentam ignorar o clamor forte.
O olhar atravessa o fulgor, abrigado pela fresta,
Embora cada imagem desgastada ainda se repita.

Meu corpo está cadeado a sete chaves pequenas,
São oito crianças irmanadas, guardados nomes,
Cingidas num círculo de giz, no trevo da sorte.
Muitas vezes dormi, débil luz na incerteza,

Sob a única lâmpada mortiça e acesa.
Na casa dos dez ignorados destinos,
Cada um com suas recônditas dores...
São constantes as coisas da casa de meu pai.

Imorredouras e de dura substância e desatinos...
Cartas, poemas e sonhos brotam dela,
A cada vez que arrebento as pesadas tramelas.
A casa de meu pai tem uma passagem secreta...

Um quarto escuro, ampliador de autoridade.
Uma coberta de lenha, uma mangueira de folhagem,
Um punhal, uma navalha e goteiras no telhado.
Muitos argumentos, mil pátrias e eu um degredado...

Os objetos constantes da casa encerram austeridade.
Na mesa de desenho há química perpétua do sangue.
Sem sair da casa de meu pai viajo alforriado
Na Larousse, no embornal de pesca, expatriado.

Longe, na Antuérpia, albergado em Flandres,
A casa de minha mãe tem sempre-vivas,
Tão pequenas que não se podem vislumbrar.
Sente-se o bálsamo, sem saber da pétala lobrigada.

Uma cozinha e uma porta promissora de interstício
Nas constantes e intraduzíveis sombras, um trifólio.
Mesmo livre, todo evento me mantém ali subjugado.
Sentado em bancos, onde me pesam os ombros

Acostados no vento, no tamborete sem espaldar.
Ao sair da casa de minha mãe viajo encarcerado...
Na oração, no aroma misturado a copiosas lágrimas.
Folheio um livro autobiográfico, trazido comigo

Da improvisada estante de remoto abrigo,
Ora útil ao meu solitário e tímido ofício.
Interrompo mergulhos à beira do precipício...
Bebo em canecas de ágata azul a minha mocidade

Na sucessiva degradação do escasso esmalte...
Machucada laca na impiedosa consistência,
Das indestrutíveis e duras beiradas do tanque.
O jardim de minha mãe, que havemos plantado

Em latas de flandres, preserva o repertório.
A casa de minha mãe tem uma passagem secreta...
Sem sair da casa de minha mãe, continuo escravizado,
Na Catedral Gótica de Nossa Senhora, encarcerado.

No genuflexório, no quarto pequeno de luz apagada,
Que abriga obras de Rubens, vivo abençoado...
Longe, os objetos constantes da casa de minha mãe
Encerram silenciosa e padecente docilidade.


Valéria Aureo

Poesia Publicada em Entrelinhas Literárias - Antologia Scortecci de Poesias, Contos e Crônicas 
Scortecci Editora 2011
pags 362 a 369