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quarta-feira, 29 de junho de 2011

POMBA E RIO




Um o mar alcança...
Alça voo a ave branca.
Uma, plena de penas e apenas asas, açoita o vento.
Corta a noite e acalma o pouso entre telhados,
Onde faz ninhos a arrulhar lamentos.

O rio, ao contrário da ave, vai rasteiro
A esgueirar-se pelo chão ao meio.
Acomoda areias, ramos, seixos e sobranceiro
Rolando águas, peixes, veios,
Compõe com a ave tal diversidade...
De estar ela sobre casas, conquistando o infinito
E ele, o rio companheiro,
De estar na terra a expandir-se aflito
Entre pedras, sob o atrito, a machucar-se inteiro,
Enquanto o pássaro a refrescar-se veio
Ao seu encontro fazer-se Rio Pomba.
Oposição de estar ela no ar, ele no chão;
Duas forças antagônicas, primeiras,
A ser só uma, uma cidade entre as mineiras
Pacificada sempre, por ser pomba.
Ser rio, ser unicidade. Ar e aguaceira
Que contêm voos, ares... E corre mansamente
Entre montanhas tímidas, o rio resistente...
Que eu não me deixe
Insensível, esquecer-te,
Perder-te surdo, ignorar-te o grito,
Ver silencioso, secar-te o leito.
Que eu não me deixe
Mudo, ignorante,
Aprisionar-te pássaro e peixe...


Valéria Áureo Cerqueira

Poesias

Pomba e Rio, poesia laureada no Concurso Prêmio Canon de Poesia 2009 -
Coletânea 50 Poetas

terça-feira, 21 de junho de 2011

Sono das Pedras

Arte Digital: Valéria A. Cerqueira



Montanhas! Terras de natureza intocada,
De solos férteis, índios nus e pagãos.
Portugueses abrem-me chagas profundas com as mãos;
Bateias, pás, bicames, peneiras, canoas e agitadores,
Levam minhas pedras, provocam-me tamanhas dores.
Cravam-me ferros no ventre. Traficam escravos...

Recolhem no leito dos meus rios o pó dourado
Em posse execrável, o coração despedaçado.
Jazidas exauridas... Ouçam o meu grácil brado!
Cataguás, Caeté, Itambé, Itabira, Rio das Mortes,
Para onde me levam? Que triste a minha sorte!...
Eu indefesa montanha virginal, vestida e oculta

Nas florestas tropicais embrenhadas brasileiras,
Mostro-me seminua a Portugal, que me desnuda.
Violenta-me com Bandeiras que me rasgam as castas vestes.
Roubam-me esmeraldas, diamantes, ouros e pratas.
Toda verde, cordilheira corrompida, dilacerada, choro.
Deixam-me exposta, ao deleite da astúcia estrangeira,

Levam-me à Europa, aos pedaços, disfarçada em âmbulas.
Dão-me beijos em Coimbra, nos cetros, nos anéis e nas campânulas,
No bairro alto dos sonhos, nas capas e cantos dos bacharéis.
Sofro!  Imploro aos filhos dos coronéis, nos palácios de Lisboa.
Eu sinto saudades da minha terra; eu, derretida na coroa,
Escoada nas calhas, nas areias de distantes rios que faiscam.

Uns garantem-me a Pátria, no meio da noite, nos santos ocos.
Ourives! Seios de ouro eu tenho. Rotunda, verde e formosa
Em curvilíneas montanhas, contidas no meu berço;
Busto, firmes ancas preciosas de raras turmalinas,
Nas formas femininas das Minas... Açafata das rainhas.
Nada mais sou que delicadíssimo e rico adereço.

Lavra-me, livra-me a coroa portuguesa ferina
Das vísceras o quinto da recôndita riqueza.
Sonegação e degredo; derrama... Desfaleço.
Sou aviltada e indefesa noiva na própria cama,
Ouro em pó, em mãos de imigrantes sequiosos,
Cujas tramas adornam os faustos das cortes europeias...

Aos pés do Itacolomy correm veios, entre as pedras,
Que lançam os fundamentos de uma cidade que emerge,
Por cujas ruas percorrem minhas ardentes lágrimas
Das jazidas áureas e dos ideais da liberdade.
As minhas matas aos poucos vão restando pálidas.
Vila Rica/ Ouro Preto na alma de Minas Gerais.


Emboabas, Capitania das Minas, desmembrada geografia;
Dura extração, interposta etnia. Sinto-me tão fria.
Portugueses, paulistas, negros, índios, imigrantes
Misturam-se e formam um mosaico cultural.
Dragões sufocam rebeliões. Meu aspecto é magoado.
Tudo em torno eu ouço e gravo do povo revoltado.

Há sussurros, no ideal de quem conspira e clama.
Choram por mim os notívagos inconfidentes;
Lutam, se escondem... Morre por mim Tiradentes.
Eis a efervescente sociedade mineira, democrática.
Grita o politizado povo mineiro então nascente:
Um Estado Moderno, de cultura sem precedentes!...

Vilas, rica arquitetura... Mecenas e mestres de genialidade
Patrocinam o Barroco Mineiro de esplendorosa dramaticidade.
Poetas! Seios de ouro eu tenho. Rotunda, verde e formosa
Em curvilíneas montanhas contidas eu adormeço cálida...
Sono das pedras; terras de natureza pródiga, brasileira,
Aurífera poesia e pó... Palavras, pedras e poeira.


Valéria Á. Cerqueira



















quarta-feira, 15 de junho de 2011

Do Ponto Atrás ao Ponto Com...

                                                        Ilustração: Valéria A.Cerqueira


            Pelo código Morse*, por ponto e traço, o noivo mandava avisar que em breve viria para definir sua situação com a amada:
           Prepare tudo noivado Ponto. Levo alianças Ponto. Marcar data casamento Ponto. Saudades Ponto. Seu noivo Carlos Ponto.
           A moça apaixonada lia o telegrama feliz. Enfim, o noivo voltava formado da capital. Brevíssimas palavras e promessa de casamento. Ela bem preferia as longas cartas de amor... As que ela escrevia preenchendo várias e várias folhas finas com centenas de pontos a discutir. Muitos pontos a decidir antes do casamento. Muito ponto e vírgula. Três pontos, então? Quanta coisa estava suspensa, sem resposta, sem definição, sem ponto final... Dois pontos importantes: onde morar, quantos filhos... Com a sogra?... Nem pensar, dizia a noiva com indefectível ponto de exclamação!
            Era ponto de honra ter a própria casa. Ele nem sabia muito bem por que tantos pontos de interrogação na cabeça da moça, quando se tratava da mãe dele. Havia até pequenos pontos de discórdia entre as duas. Mas ele não podia compreender que pontos da mãe desagradavam a futura nora. E vice versa. Nenhuma das duas entregava os pontos...
            No ponto em que as coisas estão... Sei não, pensava a mãe da noiva sempre silenciosa, não querendo por um ponto na conversa dos dois. Na discussão, a moça era mais geniosa e levava alguns pontos de vantagem. Primeiro ponderava; se não resolvesse batia o pé e pronto. Mais um ponto a seu favor. Quantidade de filhos? O que Deus mandar! Depois danava a discorrer, ponto por ponto, o que seria a vida em comum.
         Muitos pontos duvidosos na cabeça dos dois... Principalmente na dela, enquanto bordava, embainhava, chuleava; ponto pra frente, ponto atrás... Um depois do outro. Vestido, Igreja, festa, lista de convidados... Entre um ponto e outro, muita preocupação e a cabeça a ponto de explodir. Namoro e noivado eram para isso mesmo: ver se vai dar certo, analisar ponto a ponto. Ver os pontos que combinam e os pontos que não combinam... Ponto cruz!... Que cruz é essa dúvida... Cruz credo!... E se não der certo? Ter que viver junto o resto da vida?... Valeria a pena casar, tão jovem? O que se tinha que aprender para ser uma boa mulher?... Bordados e costuras ponto a ponto; ponto atrás, ponto cruz, ponto corrente. É...  Casamento é uma corrente... Titubeava com a agulha espetando o linho e a linha se arrastando a cada ponto de reflexão. Ela ficando nervosa com a expectativa do casamento, fazendo o enxoval; estressada, a ponto de ter um chilique... E os doces da festa? O ponto do doce para cortar, ponto do caramelo, ponto da geléia. A novilha no ponto de abate pra festa. Do ponto de vista do pai estava tudo certo. Cedia o ponto do antigo consultório pro genro tocar a vida de médico. Passava o ponto e a clientela... Estava decidido.
           O ponto que mais o aborrecia nela eram os ciúmes... Mas, com o tempo ela amadurece. Chega-se a ponto de equilíbrio. Tudo questão de paciência.
          - Oh! Meu Deus... estou tão nervosa... A ponto de desistir... Suspirava aflita.
Ao menos tinha muito tempo para pensar, até porque casamento, naquele tempo, era para a vida inteira.
            No ponto de ônibus o rapaz espera impaciente a condução. A que ponto chegou o nervosismo da moça: brigar na véspera do casamento?... Quase ela põe um ponto final no noivado.
        Ah! Naquela ocasião quase tudo era poesia circunstancial!
Agora, os tempos são outros: Ponto com. (Com pressa, Com improviso, com audácia, com direito a voltar atrás e desistir).
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Pela Internet, por bytes no cyber space, o jovem arrisca e envia um convite:

      Aí maluco... Tá ligado? To vazando morar com a Jane. Bora comemorar. Kada um leva o seu. Se não der certo volto pra kasa da mãe. Valeu? Terminei fac, sem trampo ainda.
Bloqueei MSN. Jane invade meu Orkut. Mó ciúme. Troquei a senha... Deletei as amigas... E-mail novo: tocasado@.com.br Então... Já é?
Fui.


Valéria Áureo 

* O telégrafo foi o primeiro aparelho que permitiu a comunicação à distância através de fios e da eletricidade. Esse aparelho foi inventado, em 1837, pelo norte americano Samuel Morse. Em 1844, Morse transmitiu a primeira mensagem telegráfica pública e demonstrou como o telégrafo era capaz de enviar sinais rapidamente e a grandes distâncias.





segunda-feira, 13 de junho de 2011

Onde estão as borboletas ou A leveza da Inspiração








Bem tarde da noite, minha mãe me liga e me pergunta: onde foram parar as borboletas, minha filha? É que a cidade está coberta de flores nas acácias, quaresmas, flamboyants. Tudo aberto em primavera, mas não vi mais borboletas. Na hora senti-me responsável pelo desaparecimento delas. Teria eu aprisionado todas, como já fizera no passado?...


Formigas, moscas, borboletas e o que mais há no mundo para se ver. O que eu pudesse pegar eu colecionava com a avidez dos meus olhos e a agilidade das mãos, com pressa de quem quer crescer. Um dia aprisionei muitas borboletas em uma caixa de tela fina, querendo guardá-las e eternizar o voo e a beleza delas. Não compreendia a fragilidade da vida e desconhecia a fugacidade da existência. Só pensava em guardá-las ao montes, da mesma forma que colecionava papeis, pontas de lápis de cor, botões e tudo que despertasse brilho nos meus olhos. Com o mesmo ímpeto aprisionei borboletas, distanciando-as das flores, do ar, da liberdade e voo, para retê-las para sempre. Jamais imaginei que se perderiam; ao contrário, pensava perpetuá-las como num quadro vivo. Só fui compreender que não se pode reter a beleza, nem a juventude, quando as encontrei caídas como pétalas no fundo da caixa. Antes lagarta repulsiva e crisálida, depois o leve inseto.


Borboletas se comunicam por sons oriundos de suas asas, eu aprendi. Falam-se num tímido farfalhar inaudível, percebido recentemente por pesquisadores. Um som brisa na seda fina de suas asas coloridas. Mas era óbvio que deviam se falar. Nunca imaginei que qualquer criatura deste universo pudesse não falar... Ainda mais as borboletas, que têm tanto o que dizer sobre os campos e as flores e os voos sobre as cercanias e sobre meninas que correm para alcançá-las... Os homens se falam por palavras ou por ausência delas. Gestos, silêncios, olhos e lágrimas...


São muitas borboletas, oriundas de toda parte: Aprendi, depois de grande, sobre a nútica borboleta, vinda das longas migrações do continente americano, num bater de asas que dura três mil quilômetros. Incansável maratonista que vem do Canadá, em setembro, até as florestas de Pinheiros do México, onde chega, em novembro, exatamente no dia dos Mortos. Para os habitantes da região as borboletas representam a alma dos entes queridos, que retornam em revoada. Pois agora elas invadiram Portugal e se deixam ficar nas zonas de várzeas das ribeiras de Algarves, e sua presença já é suficiente para tornar a região mais bonita, onde se confundem o inseto e a flor. Linda forma de eternizar as pessoas que amamos, imaginar que vêm nos rever, ao menos uma vez, disfarçadas em mágicas criaturas. Alguns as concebem estrelas perdidas na dimensão infinita do céu; assim são mais distantes. Prefiro imaginá-las borboletas, mais ao alcance dos olhos e das mãos..


Tive uma caixa de borboletas amarelas, das que voavam numa tarde distante, no quintal de minha casa, sem saber do sentimento de aprisionamento e solidão. Não soube pensar nelas, só em mim. Eu era ainda menina e meninas só sonham, brincam, riem e algumas, como eu, aprisionam borboletas, observam formigas, dançam com moscas... Hoje fico mais tranqüila com minha forma de prestar atenção em tudo. Damien Hirst foi mais sábio e pintou diáfanas borboletas. Salvador Dali foi mais genial, pintou e eternizou borboletas em uma tela suave, leve que faz o coração alçar, perdido na transparência delas. Também eu desenhei tantas, e colori e imaginei pousar em muitas cores e perceber tantos perfumes. Meu pueril fascínio pelo pequeno ser não me permitiu guardá-las para sempre, como os pintores souberam fazer. Eu, infantilmente, ainda tenho aprisionadas as borboletas que peguei. Embora não possam ser apreciadas como uma valiosa tela num museu, elas me permitem voar, voar, voar...


Bem mãe, já sei... as borboletas estão livres, voando nos azuis dos seus olhos.





Valéria Áureo
Publicada em O Imparcial
                              em 30/09/2004

quarta-feira, 8 de junho de 2011

Previsão do Tempo

                    Ilustração:Valéria Cerqueira: Desenho Digital




Um dia ele olhou mais detidamente para o céu


Que o costume...


Prestou atenção no tempo;


Destilou certo azedume.


Apagou-se dentro dele o lume.


No cinzeiro esmagou a brasa do cigarro


Aceso/apagado/esfumaçado, ao final queimado...


Disse que estava nublado, escuro; ele cansado,


Prenúncio de tormentas e ventania.


Vai chover!... Previa... Mau augúrio,


Nem um afago...


Nada de encontro, balbuciou entre dentes;


Não poderia sair, entrementes.






Outro dia ele baixou os olhos, olhou para o chão...


Parecia entediado.


Falou do tempo... Disse muitos nãos!


É... vai chover! Sussurrante e conciso.


Disse que precisava pensar, entre repentes;


Saber o que sentia.


Desconfiei... Quanto tempo não me dizia:


Saudades, meu amor! Floria.






Outra vez ficou tarde... muito tarde,


Escuridão alternando luz: anoitecendo, amanhecia,


E o calendário desfolhava folhinhas dos semanais...


Ventava, molhava, secava, nublava e chovia.


Outras vezes o sol era tíbio ou ardia...


Amanhecia janeirando, doze meses,


Decembrando nas árvores de Natal.


Ele nunca mais apareceu...


Nem mesmo para dizer adeus!



Valéria A. Cerqueira