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quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

Não fosse a poesia...






          Não fosse a poesia, nada mais seria possível, apenas um dia igual: amanhecer engolindo sem sentir a pressa e o gosto, minutos e café. Engolir a própria fome. Descer barranco abaixo sob a chuva fria, contornando o vento, a pobreza, ruelas estreitas e a solidão. Ser aprisionado pela vida no compromisso do sol com a luz, do galo com o canto, enquanto o pássaro aprecia preso na gaiola, a minha solidão. Eu, do lado de fora, em declarada ousadia, invado o inevitável dia. Começo tudo de novo, teimosamente. Recomponho na aridez do meu espaço aquilo que meu coração precisa para sobreviver. Tudo, sem repetir-se na óbvia sequência do dia: estar sempre desvendando trevas e tristezas, alternando sol e lua, buscando a cada instante alguma coisa que justifique a vida. Mas, na repetição diária de escolher os grãos de arroz, o coração fugitivo da rotina dedilha sílabas, compõe poemas e versos mosaicos sobre a mesa tosca. Não importa quanto falte, não importa quanto tudo me faz falta.  Separo as pedras do arroz e da própria existência, porque só estão ali para pesar. Separo e rejeito o sofrimento como pedras recolhidas entre os grãos brancos. A água da torneira improvisada escorre pela humilde louça, delineando um rio pia abaixo no novo destino do latão. As mãos limpam o peixe para o almoço, desvencilhando-o de entranhas e de escamas madrepérolas. O coração extasiado, reflexo da alma, deslumbra os movimentos do peixe antes, inexistentes agora; não mais livre na água fria do rio que só eu vejo.
          Eu pensava: os peixes são para os rios, como eu fui feito para voar. Em minhas mãos não há anéis, senão estrelas, pedras verdes, encantamentos sob o rio que eu refaço e que contenho entre os dedos. Talvez feito de lágrimas ou águas que escorrem morro abaixo, na composição da chuva insistente e o lamaçal. Aprisiono a vida, enquanto escamo o peixe agora inerte.  Rola pela minha boca a palavra dolorida, como um anzol fisgado na guelra lacerada. Nós dois assim, mutilados, temos nos comunicado no silêncio, enquanto relâmpagos acendem violetas nos meus olhos. Ah!...Não fosse a poesia...
          Ponho a mesa, estendo a toalha, visto a ceia em linho de sacos de trigo alvejados. Brancura farta na imensidão da mesa quase vazia. No coração as escamas arrancadas são cordilheiras, envoltas em fubá dourado, dorso do peixe servido à mesa, aprisionado na imobilidade do prato. Meus olhos jorram maremotos, enquanto a espinha travada na garganta anuncia a minha fragilidade. Na minha alma o peixe ainda nada esguio, escorregadio pela minha boca, restaurando a possibilidade de todos os sonhos e viagens. Penso na casa, na pouca comida, nas crianças, na vida... Mergulho na humildade de minha mesa tentando preencher o vazio dos pratos, alcançar o último nado, o naufrágio, as frias fossas sob as grutas. Do teto escorrem goteiras, esculpidos cristais em grutas, estalactites, lustres imaginários insinuando arquitetura dos anjos ou, quem sabe, lágrimas minhas, lágrimas dos meus filhos, lágrimas de Deus.
          Seria só um dia a mais no barraco úmido, não fosse a suavidade do vento compondo com a noite uma sinfonia depois da chuva. O vento cicia nas folhas de zinco e ouço violinos... Barro, barraco, barranco, briga, barulho, berreiro de crianças. Quantos sons desencontrados e os silêncios misturados. E quando a escuridão cobre a favela depois que a chuva passa, eu posso abrir a minha caixa de joias, eternamente ao meu alcance, simplesmente olhando para o céu... A primeira estrela que eu vejo, parece minha. Parece perto, parece sim. Eu a toco com a ponta dos dedos e a faço repousar como aliança, pássaro solto na palma da mão. Meu diamante solitário, brilho de esmeralda e alguma coisa de mim. Certamente a esperança... Ignoro tudo: um desassossego, um presságio, um jeito de solitário manter-se aflito no ar, um oceano de chapéus acenando despedidas... Beijos jogados ao léu, ruídos do espatifar de um cristal, que ouço em lugar dos gritos. Mas é meu todo aquele céu cravejado de brilhos. Meu, só meu, porque o alcanço com olhos e o desvendo com o coração. Posso tê-lo e guardá-lo onde sempre soube estar. Tão livre, tão à mercê de todos e ninguém pode tirá-lo. É... Ninguém o rouba de mim, nem o percebem. Não sei se longínqua ou próxima a minha fortuna.
          Uma eternidade provável eu percorro com os olhos e vejo toda constelação absolutamente livre no ar. Não avisto tetos de papelão, paredes de compensado, lixo amontoado, água escorrendo e lamaceiro. Não ouço os tiros, não ouço choro de crianças, esqueço-me da fome. Não sinto cheiros. Não percebo as entranhas da miséria. Estão expostas em esgoto e negrume luzidio. Meus olhos alcançam além das estrelas, muito acima das casas, muito, muito acima dos homens.
          Ah!... Não fosse a poesia e o meu modo longínquo e tão próximo de estar dentro da estrela...
         Eu tenho o céu, o sonho sobre a cidade adormecida e todo o encantamento dos poemas com que alimento a minha esperança à noite e recomeço o dia.
         Ah!... Não fosse a poesia, nada, nada justificaria a minha vida...


Valéria Áureo Cerqueira

Prêmio Academia Brasileira de Letras e Folha Dirigida- 2004