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domingo, 15 de maio de 2011

Enquanto dança, a vida passa...

                                                             Intervenção na Imagem
                                                              Valéria A. Cerqueira






- Meu Deus... Eu quero dar o mundo para ela... Ele pensou, num breve lampejo dentro da alma e tomou nos braços a moça mais bela do baile, para dançar.


A vida devia ter ficado assim, do jeito que era pra ser. Mas não, o sujeito inventa de mudar a simplicidade e toma gosto pelo que é incomum!... Dá de desejar o que vê, ainda mais se revestido de formosura. Imagina que precisa daquilo para continuar respirando. Ambiciona o que não lhe cabe, por desproporção do que tem e do que espera ter! Força pouca, ou quase nenhuma ele fazia aos dezoito anos... Era mais natural, daquela forma como Deus é servido, na sua ponderação e justa medida de fazer as coisas perfeitas; nem mais, nem menos: ser nascido com satisfação para viver com o que é comum e pouco. Pouco não, suficiente! Consideração e apego ao chão, simplesmente, já seriam a conta exata de acertar na vida. Que pedisse ao menos um quinhão de terra e força para o afadigamento, era o que toda a família esperava dele. Do resto se cuida e dá-se jeito, diziam. Nada de ambição de recolher com os olhos de cobiça aquilo que não é para ser seu; se é seu destino não almejar o que Deus não lhe deu, por decisão própria. Aliás, lhe deu mesmo foi o bastante: saúde e sonho demais. Muito mais do que lhe teria serventia qualquer outra qualidade daquilo que haveria de sobrar. O que mais, se nasceu macho para mandar no mundo? A mulher, fêmea para mandar na casa, também já teria o bastante destinado, para se dar por contente. Isso se ela fosse do seu agrado e competência houvesse na cabeça dela, mesmo que fosse só para governar um lar. Mas ele deu de querer mais, muito mais que as terrinhas e poucos bois. Queria ser doutor, dizia para o pai pouco resignado, temendo ficar sem o único filho homem em casa.


É... Eu quero dar o mundo para ela... E a música soando em seus ouvidos. Ele rodopiando, rodopiando, rodopiando, enquanto a música tocava.


O pai bem que tinha argumentação para reter aqueles sonhos esquisitos de afastamento da casa, buscando sei lá o que, do lado de fora do mundo, porque a tal Universidade Federal era longe, bem longe dos seus olhos espremidos em duas tristezas: o tempo e o esquecimento. Parece que o moço não ouvia seus queixumes...


Dava-se o velho de repetir a mesma ladainha: Olhe, meu filho, dê-se por satisfeito da bênção, sim senhor! Nunca blasfemar da vida, é muito importante. Pois não é? Não vê que brota do chão o suficiente que é de chuva e sol alternando estação, estio, colheita e provisão? Enfim, tudo o que é possível para os seus braços recolherem e o que pode conter sua boca; mais que isto é desperdício. É abuso que não é fome; é gula. Nem é humano, nem é decente. Veio aqui com o que é justo merecimento e consideração de Nosso Senhor! Caso ambicione mais que a barriga e a alma podem conter é por questão de exibição e desejo de despertar invídia alheia. No final, nada disso conta. O caminho é sempre o mesmo para todo mundo. O que está exposto nas prateleiras é deslumbramento e inutilidade. Vai se perder na ilusão do que está longe? O que quer, você já tem e não se dá conta. Não precisa ir tão longe. Dê-se por satisfeito com mão boa para a capina.


- Mas eu quero dar o mundo para ela... E a moça se aninha em seus braços leves, leves, leves...


Escuta, filho! As duas coisas caminham juntamente: o trabalho e o sonho. Ter mão boa pra plantar e pra repicar a viola; isto é variação de destino das coisas. Duas coisas distintas: o que é difícil e o que é suave na vida. Porque dá pra ir compensando uma empreitada com a outra. Do mesmo modo que a tristeza só tem cabimento, porque depois ela se vai e dá espaço para a alegria. As mãos e a cabeça servem paras as duas. Dor e contentamento. Rudeza e leveza combinadas na igualdade, sem desperdício da função. De manhã a mão é pesada, atarracada e grossa para o eito e a enxada. De noite viram plumas as pontas dos dedos. Seja para a viola, seja para a mulher amada. Isso é bastante para possuir de seu. O campo para ser amainado e a melodia para se encantar. É só dar tempo ao tempo... Quando o corpo estiver aprontado, sem ao menos esperar, de bom grado lhe cai uma paixão por uma cabocla e os suspiros encaminham suas ideias pra fazer vida com ela, trabalhar e alimentar a meninada. Ah! Porque isso é certo, que nem o dia clarear depois da noite. Vai vindo um depois do outro, um depois do outro, um depois do outro... Quando vê, já são oito!


De seu são mesmo
a mulher que Deus destinar e toda essa filharada e não de outrem, porque não lhe cabe dar conta da vida alheia, Deve guardar o conhecimento, as vontades e o respeito aos dias da estação e ao cuidado deles, pois haverão de crescer e deixar tudo igual, com o passar dos anos. Sim, como era no começo: você e ela. Tal qual foi comigo e sua mãe!


-Vou dar o mundo para ela! E o baile prosseguia na cabeça, até quase de manhã. Tudo girando...


Mas sujeito, o senhor já dançou muito nessa sua vida. Abre o olho! Que depois da festa de São Roque é tempo de plantar... Depois das festas de São João se apresse seu cabra, pois é tempo de colher... O resto é pura ilusão de mocidade. Qual! Doutor...


- Ah! Vou dar o mundo para ela!... Rodopiava o moço, imaginando o futuro.


Rapidamente e num giro, a manhã seguinte chegava depressa e embarcava o moço no ônibus que o levava para Niterói, a fazer a continuação desta sua história em cidade maior, muito distante dos limites do mato. Hora de deixar para trás a moça, o primeiro amor e as espirais da ilusão da mocidade e enfurná-lo na Universidade, que ali era lugar de escrever um futuro diferente. Questão de deixar no passado e na memória os falares, o trigueiro da pele da moça, o cigarro de palha e a reminiscência da roça e ir se acostumando com os hábitos citadinos de pegar condução, respirar o ar abafado da vaga de estudante, o cheiro da biblioteca e a refeição apressada das lanchonetes. Nada parecido com o leite tirado da vaca da fazenda do pai e a broa de milho com erva-doce que Tuniquinha preparava. É, tudo por culpa de querer mais que a vida tinha ofertado, porque não era rapaz de se acomodar com o que tinha. Pois insistia em dizer que nada tinha de seu, mas do pai, a quem devotava veneração. A minha vida, dizia, esta eu tenho que plantar, num sítio bem longe daqui; ver crescer e só mais tarde colher... A cabeça pedia mais que o matiz da invernada sobre as folhagens; mais que o mugido das vacas leiteiras e a sela do cavalo.A cabeça sonhava grande e deixava longe a menina no baile, girando sozinha, enquanto o rapaz viajava para Niterói, em busca de uma carreira e de futuro mais promissor que a fartura e sazonais das terras em Minas. Ambicionou voltar doutor e se casar com ela. Nos seus planos estava sim, disposto a voltar para os braços dela e continuar aquele rodopio do baile, pelo resto da vida... É isto, voltar assim que puder...


Eu quero dar o mundo para ela!... Era no que pensava, enquanto assoviava baixinho e andava lentamente nos corredores da Universidade Fluminense, entre uma aula e outra.


É, a vida é mesmo engraçada; o sujeito inventa de mudar a simplicidade e toma gosto pelo que é incomum!... Ser um doutor! Imagine! Dá de desejar o que vê, ainda mais se revestido de formosura. Quem diria! Doutor especialista em coração...


Cinquenta anos passados. Doutor de coração. Cardiologista! Um excelente cirurgião. E passou a vida inteira abrindo, remendando e costurando os corações, como se quisesse encontrar a si mesmo dentro deles. Nunca mais houve tempo para dançar, nem voltar para os braços dela.

        
  Autora:   Valéria Áureo
                                                                           

Texto premiado pela Universidade Federal Fluminense 
e publicado na Coletânea dos 50 anos da UFF
17/12/2010



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