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quarta-feira, 26 de outubro de 2011

A Devoção das Palavras

                                                   Intervenção na Imagem- Arte Digital por

                                                    Valéria A. Cerqueira



            Clarice, a poeta que vivia “Perto de um coração Selvagem” tinha uma Flor de Lis, cravada no peito, (Lispector) e a poesia à flor da pele; Clarice era possuída pelo “demônio de escrever”. Desnudou-se sem preconceito no livro A Descoberta do Mundo: “Eu disse certa vez que escrever é uma maldição. (...) mas uma maldição que salva. Salva a alma presa, salva o dia que se vive e que nunca se entende a menos que se escreva. Escrever é procurar entender, é procurar reproduzir o irreproduzível, é sentir até o último fim o sentimento que permaneceria apenas vago e sufocador. Escrever é também abençoar uma vida que não foi abençoada”.
            Nietzsche afirma: “De tudo que foi escrito, só gosto daquilo que é escrito com o próprio sangue. Escreve com sangue e aprenderás que sangue é espírito”.
            Assim, escrever com sangue é buscar com arrebatamento e voracidade na essência da alma a Verdade que nos liberta de todo sentimento. Escrever exige doação, entrega absoluta e muita flexibilidade. Espírito maleável, tão natural quanto a do galho que se verga ao vento, ou da água que contorna as pedras do oceano. É justamente na flexibilidade de ideias, conceitos e pré conceitos, que podemos extrapolar nossas palavras através da arte, realizando o milagre da transfiguração do sangue em signo, símbolo maior da própria Vida.
            Não é importante explicar ou definir poesia, porque isto limita o seu processo criativo. Criar é ver na parede vazia e transmutar janela, quadro, cadeira, candelabro sob as águas da imaginação, sob a luz inebriante do mistério, do novo sentido. Não há que definir como foram parar no espaço. Saiba o bastante: que a poesia existe para amansar as feras, dominar-lhe as garras e os dentes e fazer companhia para qualquer solidão... a sua ou a que não é sua... Quando pronta, as palavras encantatórias fazem companhia aos outros.
            
            Embora em sua gênese a língua seja oral, a palavra escrita, costuma usurpar-lhe o primeiro papel, fato salientado por  linguistas como Saussure, Meillet, Hjelmslev, o que foi objeto de Fetichismo de la Letra do linguista filólogo Rosenblat. O espírito passou a corporificar-se na letra. Se nos primórdios o terrível destino (fatum) era o que estava dito, há muito, a fatalidade é para o homem “o que está escrito” Maktub! Estava escrito! Dizem os árabes.
            Ao lado da devoção da palavra, a Antiguidade conheceu o culto do silêncio, com os seus deuses Hórus, no Egito; Harpócrates, na Grécia. Silêncio e palavra... A palavra é o instrumento do escritor; fórmula de magia e de encantamento. Pela palavra fomos criados, pois Deus formou o mundo com o seu poderoso Verbo. Faça-se a luz!... Faça-se o homem!... (Gênesis)
            “Com a palavra criaram-se e destruíram-se mundos, selaram-se destinos, elaboraram-se  ideologias, proferiram-se maldições e blasfêmias, expressaram-se ódios... Mas com ela, e só com ela, em tantos e desvairados povos, falou-se de amor, consolaram-se as aflições e elevaram-se as preces a Deus” (...) “A palavra é um gesto e a sua significação um mundo” disse Merleau-Ponty. Como a “Estrela da Manhã” de Manuel Bandeira, ela poderá apresentar-se aos nossos olhos... Pura ou degradada...”(Celso Cunha in Sob a Pele das Palavras). A divindade da palavra é um fato universal”.
            A poesia é! É verbo...É criação. É tudo, é isto, é aquilo, é nada, é muito, é o suficiente, é aprendizado, é ensinamento, é vida, é morte, é súplica, é conselho, é oração, é delírio, é lucidez, é insânia, é alegria, é dor, queda e exaltação... É a deusa dominadora do poder mágico do verbo humano. A palavra edifica, a palavra abate e aniquila.
            Estamos sempre a esperar, no silêncio,  a grande musa e os seus sortilégios, para que jorrem palavras em nossas mentes; No Egito havia a divindade Ísis, (correspondente a Deméter na Grécia). Uma inscrição encantatória declara: “Eu sou Ísís, a deusa, a senhora das palavras de potência... as palavras cujas vozes são Magia.”  
            Abençoados Poetas!... 

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Perguntaram-me como era escrever.
Disse que não sabia,
Apenas fazia.
Era assim como espremer
O cérebro, o coração,
Até sair sangue...
De onde escorre a alma, a luz
De uma exótica partitura.
São sons, são sentimentos.
Não adianta explicar,
Há que fazer.
Recolher as emoções todas num copo,
Como quem pega
Água para beber.

     Valéria Á. Cerqueira - 
Em: Sentimento Disponível
      
            *Dia do Poeta- 20 de outubro

terça-feira, 11 de outubro de 2011

Quem mordeu a maçã?




                 Da maçã do Paraíso ao império da Apple, pense diferente! 
        Muita transformação se deu, através dos séculos, em matéria de comunicação e símbolos. Para trás ficou o conselho maléfico da serpente à incauta Eva, para que ela desafiasse o Criador; que Eva comesse a maçã, adquirindo desta forma todo o conhecimento, até então negado, sob pena de perder o paraíso... Assim ela fez e a consequência disto todos sabem... Já imaginou se tivesse pensado diferente? Mas, cumprindo ou não os planos divinos, ela também quebrou um paradigma e cá estamos nós. Ao longo dos séculos vimos Newton, a maçã e a lei da Gravidade; A Bela Adormecida, a mordida na maçã, o sono e a espera do beijo do príncipe... E inúmeras quebras de paradigma. Até se chegar a Apple de Steve Jobs, muita maçã  do amor se comeu no parque de diversão.
        Apesar de tanta tecnologia, denunciando o inquestionável avanço da Humanidade, em matéria de conforto e vida prática, estou incomunicável por causa da greve dos correios. Não fosse a internet, não saberia a quantas anda o mundo. Desde então, não recebo nenhuma carta ou jornal. Hoje eu devo a minha inclusão ao mundo das idéias e da comunicação, a Steve Jobs. Uma incluída digital... Mas, antes dele,  não posso deixar de citar Alan Turing, que através de seus estudos de matemática pura, criou a teoria da computação e, não satisfeito, arregaçou as mangas e assumiu um papel central na construção dos primeiros computadores, com o seu protótipo Colossus, o tataravô do PC, este mesmo em que ora escrevo. O que falar de um matemático que venceu com cálculos as bombas de Hitler, decifrando as mensagens cifradas e localizando os submarinos durante a guerra? No mínimo, ele merecia uma estátua no Vale do Silício, um enterro com glórias de herói; seu nome deveria virar nome de universidades... Mas não virou, porque Turing quebrou um paradigma dito moral e foi condenado por "condutas de imoralidades” por ser homossexual. Ninguém sabe quem foi Alan Turing e o que representa no universo da computação. Turing foi um gênio de raciocínio brilhante, que, por preconceito contra a sua sexualidade, foi jogado cruelmente ao ostracismo. Não conseguindo suportar a perseguição, a castração química imposta e a condenação pública, Turing matou-se mordendo uma maçã envenenada com cianeto. Por isto escolheu  a morte!
        Graças a Alan Turing e ao renomado Steve Jobs, o fundador e ex-presidente do Conselho de Administração da Apple, eu ainda estou conectada ao universo das informações por um pequeno artefato na minha mesa. Outros podem até levar um computador na bolsa, ou no bolso. Perfeccionista, criativo, inovador e ousado, Jobs ajudou a tornar os computadores mais práticos e revolucionou a animação, a música digital e o telefone celular. Não bastasse isto, Jobs quis muito mais e, com a sua genialidade marcou o mundo da tecnologia ao apresentar produtos como o  Macintosh,  o iPod, o iPhone e o iPad. Para os mais jovens o mundo é quase inconcebível sem todo estes aparelhos eletrônicos. Eu, conservadora, afeita aos papéis, agora me rendi ao conselho de Jobs: - Pense diferente! Cedi às tais inovações, uma vez que os Correios me deixaram sem opção.

        Steve Jobs contribuiu não só para o avanço da tecnologia, mas para o progresso da Humanidade, dando continuidade à concepção primeira do que idealizou Alan Turing. Com suas idéias deu-se um passo gigantesco, a partir de uma novíssima conceituação de computador, então exclusividade dos engenheiros... Ele acreditava que o mundo não se contentaria com máquinas feitas por engenheiros e para engenheiros, que ocupassem espaços gigantescos. Queria colocar as máquinas sobre escrivaninhas e as colocou no bolso. Concebeu máquinas que mudaram o cenário da computação "de garagem" que vinha se desenvolvendo nos Estados Unidos nos anos 70,  para o restante de nós, os que seriam os usuários domésticos, os que, naquela ocasião ele chamaria de loucos, desajustados, alienados e rebeldes. Ainda mais... Ele deixa um legado intocável. Muito há por vir, em conseqüência da fantástica quebra de paradigmas...
         Diante de tanta inteligência ele não se julgou superior aos outros. Compartilhou. Acreditou em uma idéia.... Em suas palestras era categórico ao afirmar: "Não fique preso pelos dogmas, que é viver com os resultados da vida de outras pessoas! Não deixe que o barulho da opinião dos outros cale a sua própria voz interior!" De apurado preciosismo Jobs criou um padrão de qualidade que jamais podia falhar. Do número de parafusos de um notebook à cor da letra do ícone do atalho do Google no iPhone, ou a curvatura das quinas de um monitor, tudo devia obedecer ao padrão Jobs de qualidade, a partir de sua visão holística: um modo de pensar, ou considerar a realidade, segundo a qual nada pode ser explicado pela mera ordenação ou disposição das partes, mas antes pelas relações que elas mantém entre si e com o próprio todo.
         Jobs não parou de trabalhar com a proximidade do fim. Seguiu até um mês antes   da morte, quando enfim deixou o cargo de executivo-chefe da Apple. Mesmo assim controlou as escolhas do que fazer com seus últimos dias. Conversou com investidores e com o grupo de vice-presidentes da Apple sobre a apresentação do iPhone 4S, que ocorreu na véspera de sua morte. Mas a maior parte de seu tempo destinou à família. Ele não queria desperdiçar um minuto, pois seu tempo na Terra era limitado e queria controlar o que fazia e quais escolhas ainda estavam disponíveis. Encarou a morte com serenidade e deixou projetos a serem cumpridos por seus sucessores. Assim, sua genialidade não se esgotou  e a missão ainda não está totalmente cumprida, pois Steve Jobs certamente aparecerá em tecnologias ainda mais inovadoras.
        Se Alan Turing mordeu a maçã envenenada, Steve Jobs, ao contrário, soube tirar proveito dela. Eu preferia que Alan Turing não tivesse ficado preso pelos dogmas, que é viver com os resultados da vida de outras pessoas! Gostaria que Alan Turing não tivesse deixado que o barulho da opinião dos outros calasse a sua própria voz interior! Mas Jobs, o homem de conselhos brilhantes, só veio depois. A maçã já estava mordida...

Valéria Á. Cerqueira

quinta-feira, 6 de outubro de 2011

Sob o ponto de vista...

                          Intervenção na Imagem - Valéria Á. Cerqueira

         A vida tem fragmentos de coisas comuns, como poeiras que repousam sobre um móvel. Aqui e em qualquer outro lugar, tudo parece igual. Imóvel parece que está  o solitário homem na sala... Sentado está o velho diante da televisão. Ora... Tudo é sempre possível quando nos lembramos de sonhar, ou se apenas respiramos. E, por ironia, parece que nos lembramos de sonhar, quando não mais dispomos de tempo, ou  temos poucas chances de viver com prazer.
         Há os que nunca imaginam outras possibilidades, senão a de continuarem sentados na cadeira da sala, respirando...
         O velho, sempre sozinho na sala, se desinteressa do que vê na televisão. Onde estão os irmãos, os filhos, a esposa, os netos? Chama por alguém e ninguém responde. Procura no bolso a bula do  remédio para hipertensão, e do spray para falta de ar; lê com seus óculos bifocais que escorregam na deselegante e enrugada curva do nariz. As letras minúsculas no papel escondem incontáveis males; afinal, tantos nomes difíceis, tantos efeitos colaterais. Melhor seria não ler... Se não sabe, não sofre. Advertências peremptórias: não tome remédios sem o conhecimento do seu médico! Ele deve se perguntar: - quem está aqui para me vigiar? Como se isto fizesse muita diferença. Farmacocinética... Ética... Parece complexo, mas esta palavra recorda-lhe o movimento do cinema... A tela da tv projeta o filme “Parente é Serpente”, do cineasta italiano Mario Monicelli. O velho se pergunta, num lampejo de lucidez:-  Por que o cineasta de tantas comédias desistiu de viver?... Será que não achava mais graça na vida? Quando  foi que parou de rir dela? É, perdeu a graça de questa vita maledetta! Vita maledetta!... Não, melhor não querer saber, por que motivo ele se jogou da janela de um hospital na Itália, aos 95 anos. Melhor não pensar nisto! Teve suas razões, o poverello... Quem sabe foi culpa dé algum parente serpente, ironiza, pensando em si mesmo...  Prudente é deixar o coração tocar por si, no ritmo que melhor encontrar e seja lá o que Deus quiser. Escrita sombria ou brilhante em papel fosco, ou um pensamento que evoca Inglaterra e afasta a Itália, não se sabe a razão, enquanto olha perdido, palavras mínimas na bula, que indicam sintomas indecifráveis... Apoplexia... À mente lhe vem Cinema, Geografia! Inglaterra! - Nunca estive lá... Corticosteróide, que diabos será isto? Asteróides cortam o universo. Devia olhar mais para o céu... Um corpo celeste? Um satélite? Pode cair em qualquer lugar. Quando morrer, quero ir para o céu... Melhor tomar o remédio de uma vez, porque há uma confusão mental a ponto de explodir as têmporas. Esta falta de ar não combinaria com Londres...
          Uma investigação envolvente de um lugar desconhecido, da mesma forma que não conhece o campo minado da mente e da alma, que nunca sabe onde pisa, desce com o comprimido pela garganta. Uma bula de remédio... anúncio de muitas impossibilidades de viagens futuras, porque, se tivesse dinheiro, iria sim para a Inglaterra. Mas agora, cardíaco, com falta de ar, abandonado pelos parentes, tudo ficava mais difícil. Viajar de avião? Não teria mais tempo. Por que não pensou nisto quando era jovem? O que tinha feito com todo os seus dias? Dinheiro tinha até como arranjar, se o sonho de conhecer Londres o seduzisse continuamente, e não tardiamente. Mas, saúde?... Não tinha como resolver. Ou tinha? Matar-se aos 95 anos, quem diria? Pobre Monicelli de sua Itália. Mas eu queria Inglaterra... Uma Inglaterra é tão envolvente e humana, quanto  a convincente sensualidade de Copacabana cheia de corpos suados e seminus. É uma investigação coordenada pelo preço da ambição e o desejo de tudo conhecer. Preço da passagem pode até ser parcelado em suaves prestações, mas sonho não! Sonho é para ser inteiro. Hoje já não poderia mais pensar em arrumar sua bagagem e pegar um avião. Cardíaco!Foi o que  sentenciou o médico implacavelmente, sem ao menos olhar para seus olhos. Aliás, há muito não o olhavam de frente.
         Humanos, como qualquer um de nós, sábios, loucos, líricos, desiludidos vagam pela noite, ou permanecem imóveis diante da  televisão. Todos com sentença  de dias contados. Os estudantes, os mendigos, os empregados, os desempregados, os músicos e as professoras... Parece que a semana pode ser tranqüila, porque a segunda-feira acorda quase silenciosa, rente ao sol. O velho toma um remédio para a pressão à noite e outro pela manhã e segue a vida, dormindo diante da televisão, como se nada tivesse mudado fora dele. Mais uma noite, mais um dia, mais um filme. Por dentro, mais uma desilusão e muita falta de ar. Quem diria, 95 anos... Ninguém se lembrou.

Valéria Á. Cerqueira

quarta-feira, 5 de outubro de 2011

Carta Antiga ou Pequeno conto Anacrônico

Intervenção na Imagem por Valéria Á. cerqueira

         

                           Rio de Janeiro,


                

         Caro amigo,






Esta semana acordei mais antiga que sempre. Andei recolhendo saudades, antecipando uma nostálgica sensação. A alma passada ao papel... Na sexta-feira fui convidada à “Casa de Machado”. Exatamente, à casa do nosso querido Machado de Assis. Recebi o convite e fui logo contar a novidade ao meu vizinho, também de apurado gosto pelas letras e a todos meus familiares. Convidavam-me e, melhor ainda, eu poderia levar uns poucos amigos. O coração já havia pressentido com prazer as recordações de uma cidade antiga. Decidi ir sozinha, pois o amor era egoisticamente meu.
A respeito do convite e do seu remetente, lembraram-me os Accioly, recentemente vindos de Engenho Novo, que muitos bairros retêm sua alma. Sejam sons, pregões, vozes das ruas. Ele, quando escreve, transmite a impressão auditiva do Rio. Freqüentemente, pelo então imperial Rio de Janeiro, apreciava contrastes na natureza e nos homens, transformando a vida em arte, recolhendo minúcias. Lembro-lhe, caro amigo, que Machado observava as belezas no tempo, porque: “ ... muitas vezes, uma só hora é a representação de uma vida inteira”. Sempre gostou de caminhar, logo depois do jantar, pelas bandas de Laranjeiras, Glória, Praia do Flamengo e Botafogo, indo a pé até o Centro da cidade, atendo-se a pequenos detalhes... Afirmo que, entretanto, “ nunca o vi” por estes lados. Verdade é que pouco ando pelas ruas. Machado fazia planos de mudar-se para Cosme Velho.


Minha vizinha, D. Antea, assegura-me que sua mãe, cantora lírica, o conheceu, em “carne e osso”. Machadinho, como intimamente o chamava, foi vê-la em um recital, no Teatro Lírico e, em outra vez, fez questão de ouvi-la num concerto no Teatro Phoenix... Pareceu-lhe abatido, agastado, naquela ocasião. Ela acredita dever-se tal abatimento ao desagrado que ele tinha com as corridas de touros, no Rio de Janeiro. Garante ter-lhe confessado não gostar desse tipo de espetáculo. Preferia “ ver correr o tempo e as coisas” (...) A vida fluminense vivia de óperas, corridas e pleito eleitoral. Segredou-me que hoje nosso querido Machado se sentiria melhor, em face de uma nova sociedade. O moço se sustentava em genialidade literária. Árdua luta, explica-me ela, pois atingira o oficialato de gabinete de ministro, era membro do Conservatório dramático, oficial da Ordem da Rosa e estava no auge de sua carreira como Diretor de um órgão público. Contudo em nada mudara. Pura simplicidade. Tudo levava a crer que ele iria mais longe... Confidenciou-me ainda, a velha senhora, que ele andava metido num movimento, não sabia ela de que, mas estava sempre acompanhado de outros senhores, alguns sisudos, outros falantes, circulando sempre pelos lados da Travessa do Ouvidor, na redação da Revista Brasileira e na Livraria Laemmert. Estava às voltas com amigos, livros e falatórios, muitos falatórios... Um molequinho, que fazia serviços para ela, disse que o ouviu falar em uma tal “ Academia”. Exatamente... “Academia”, mas não soube dizer mais nada...
O jornal “A Marmota Fluminense” abriu espaço para o incomparável escritor. Como você sabe, igual importância tem para mim “ O Imparcial” de Rio Pomba, do nosso amigo Francisco Vieira de Siqueira, que acolheu minhas crônicas. Gosta do que eu escrevo e abriu-me ao gosto dos leitores. Aliás, o Sr. Francisco já havia prometido apresentar-me aos amigos editores, quando viesse ao Rio. Machado, como eu, apreciava jornais: “a verdadeira forma da república do pensamento(...), a literatura comum, universalmente aceita”, afirmava.
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Chegando ao Petit Trianon, fui recebida por vários jornalistas. Assegurou-me o Sr. Adolfo, presidente da “Folha Dirigida, que, apesar de Machado ter saudades do Pedagogium, do Silogeu, encontrava-se “ radiante” com a nova sede e gostava de “visitá-la”, “ conhecê-la” bem, o que fazia com muita freqüência...
Senti-me feliz em entrar naquela casa... O coração estremeceu diante dos manuscritos daqueles admiráveis poetas, que tanto amo e, apressado, recolheu memórias de aulas de literatura, quando então ouvi falar deles. Sim, lá estavam os meus amigos a esperar-me, cansados, com uma saudade centenária, com românticos sorrisos, embora não estivessem acostumados a muitas visitas femininas. Ao contrário de serem desajeitados, mostraram-se muito gentis e hábeis em seus galanteios.
Fechei os olhos e, no meu sentir, lá estava ele, o fundador da Academia Brasileira de Letras, a sorrir para mim. E, embora eu soubesse que todo seu amor fosse por Carolina Novais, senti meu coração bater mais forte. Sei que “ vive e morre por Carolina...” Ele veio ao meu encontro, ladeado por Bilac, Inglês de Sousa e Artur Azevedo, todos alinhados em suas polainas, luvas e casacas, com seus bigodes impecáveis e seus cumprimentos discretos. Beijaram-me as mãos, fazendo discreta e clássica reverência... Sentamo-nos e falamos, falamos muito. Depois de longa conversa, risos e algumas poesias, que Machado declamou a meu pedido, Bilac lembrou-se de um compromisso. Despediu-se de todos escusando-se. Excepcionalmente não ficaria para o chá, mas deixou claro que leria minhas poesias e crônicas e, se eu desejasse, nos veríamos outra vez num café da Ouvidor.
Às cinco horas, pontualmente, ofereceram-me sequilhos, uma chávena bem aquecida de chá de laranja e canela, e uma variedade de salgados e doces. Experimentei alguns e comentei sobre a linda porcelana, a beleza da casa, a conversa agradável... Machado retribuiu os elogios e, ao final, se eu não me opusesse, me ofereceria um “calix” de licor. Apreciamos o chá em companhia dos outros escritores e muitos deles quiseram saber quem era aquela mulher que estava durante todo o tempo ao lado de Machado. Argüíram com os olhos e lábios se seria ela a tal “Helena” de que tanto se falava.


Machado, entre tantos assuntos, se queixou muito da falta de iluminação da cidade e do excesso de mosquitos... Penso que já estava a sentir os desconfortos do “uso imoderado dos olhos” e de lentes incorretas, do delicado “pince-nez”. O escritor, para atender às solicitações do ofício literário acumulado com o modelar burocrata vivia a “ vertigem ocular dos tempos presentes”. Sofria com os olhos, confidenciou... O Dr.Hilário de Gouveia tinha bastante trabalho. Miguel Couto, seu médico, cuidava do resto do corpo. Carolina, luz dos seus olhos, freqüentemente era vista na varanda do sobrado, no Catete, lendo e fazendo anotações, amorosamente, enquanto ele ditava. Enfim comentamos sobre nosso fascínio por jornais...


Machado saiu apressadadamente, tão logo a reunião terminou. Tinha ainda que visitar seu editor na Rua do Ouvidor, o Monsieur Garnier, que havia publicado seus “Contos Fluminenses”. Levava-lhe um livro novo. Desejava saber se estaria interessado em sua mais recente obra, o “ Dom Casmurro.” Depois disso precisava ir correndo lá para os lados do Largo da Carioca, onde o esperava sua doce Carolina. Deveria acompanhá-la no bonde, pois não gostava que andasse sozinha. Falou-me que ela fora experimentar um vestido novo em sua modista, e de lá passaria na Rua da Alfândega, para comprar um par de luvas e um novo chapéu. Iria presenteá-la, para que estivesse ainda mais bela, na grande recepção, no próximo sábado, em casa dos pais de um novo amigo seu, o jovem Alberto da Costa e Silva, rapaz inteligente que conhecera recentemente na chácara de Joaquim Nabuco. Afeiçoou-se a ele naquela ocasião, assim que trocaram algumas idéias, pois o jovenzinho estava muito interessado em estudar culturas africanas. Viu logo tratar-se de moço de futuro promissor. Cochichou-me o querido Machado de Assis, em segredo, que se o rapazola continuar assim tão dedicado às letras, acabará sendo Embaixador e, quiçá, Presidente da Academia Brasileira de Letras. Despedimo-nos prometendo um próximo encontro para o “ chá das cinco”. Afirmou-me ele, tão logo “voltasse” à Academia, iria apresentar-me o brilhante rapaz.


Partiu sozinho depois de beijar-me as mãos, delicadamente, sem perceber tristeza e lágrimas em meu rosto, correndo pela rua vazia, assobiando baixinho, na expectativa de tomar o bonde e ir ao encontro de sua amada.


Assim, caro amigo, narrei-lhe o ocorrido em “Casa de Machado”. Escreverei para o querido colunista Nicolau Alves, e a Carmen Marini, diretora de “O Imparcial”, para que publique o honroso convite.


Brevemente escreverei a Drummond.


Machado fez recomendações e elogios a todos.

                 Valéria Á. Cerqueira