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quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

Kiss o destino

                                                               Ilustração: Internet




Kiss o destino



Há muitas dores no coração de Santa Maria.

Entre tantas dores cravadas no peito de Nossa Senhora,

a noite que passou e que não passou e nunca mais passará,

trouxe mais lágrimas para o coração de Santa Maria, a Mãe de Deus.

A noite de balada que não embalou o sono será eterna.

A noite que abalou o sono não trará mais os beijos dos filhos, devorados pelas labaredas da Kiss.

Quis a morte crucificar os pais, na vasta convulsão do beijo maldito, na madrugada longa e lilás.

A noite da câmara de gás engoliu com mórbidos beijos, com línguas devoradoras de fogo, com dentes afiados, os meninos indefesos,

sob lençóis de negra fumaça.

A noite durará para sempre.

 Ah! A aurora...

O relógio da aurora batendo, sem despertar,

O celular tocando, sem fazer acordar.

 Ah, como é difícil amanhecer e ouvir o noticiário. Mas não amanhecerá mais.



Nessa madrugada de janeiro de Santa Maria, todo filho é Menino Jesus... E toda mãe é Maria. Todo pai é José.  

Para onde correram os jovens confusos, comemorando a mocidade?

Entre espumantes, drinques, fogo e fumaça   

fugiram para onde pulsavam

as bombas-relógio: nos banheiros,  nos portões fechados, na ditadura dos comandantes da noite e suas malditas  comandas,

que cobram o preço da vida na única porta de saída.

Fogo de artifício, vela fria... É a máquina

da chuva de prata, alegoria de estrelas

ilusórias, breve e assassina, que

não consegue mais brilhar : uma garrafa de espumante para brindar aniversários, universitários, formaturas e mocidade.

Não há mais brindes.

Há mortos demais. Há mortos demais.

Um morto já seria demais...

Nas calçadas apinhadas de pais, sem paz, há mortos demais...

A boate é agora é uma vasta oficina da morte; campo de concentração com corpos

 empilhados... Uma nova Auschwitz-Birkenau.

No céu de Santa Maria, ao contrário das constelações, as vidas deixam de brilhar e se apagam precocemente;

ao contrário dos dezessete, dos dezenove, dos vinte anos, que pulsavam dentro

 de blusas, dentro dos jeans, dentro dos primeiros

sapatos de salto, dentro de minissaias, dentro de batons e cabelos longos, volta-se à infância... Chega-se precocemente ao final.

Ao contrário da vida, na pista de dança, na girândola pirotecnica, na alegoria mórbida da  morte,

      apagam-se rostos,

                dos  corpos jovens,  que ontem pertenciam aos seus pais... Agora voltam a ser bebês desprotegidos.

       Moços  que seguravam o copo, que balançavam os corpos e brindavam a vida, aos beijos, agora jazem no chão e aguardam os colos dos pais.

 Há mortos

 demais, há mortes demais, há corpos

                demais. Há pais que vislumbram seus filhos inertes, surdos aos apelos de acordar e gritam por um milagre...

Levanta, filho!



Hoje é segunda-feira...

É dia feito de lágrima em todo lugar, onde tudo poderia ser igual, mas não será.

Levanta, filho!

A grande maioria  dirige-se para o trabalho... E não se falará outra coisa, senão que há mortos demais...

Um morto já seria demais.

Crianças passam para o colégio, mais silenciosas. Mães fazem comida, mais temerosas...

As pessoas

desmarcam encontros, sem ter mesmo para onde ir.

Muita ameaça

pesa sobre as cidades e suas mocidades.

Os homens querem fabricar estrelas dentro de boates.

Querem brincar com fogo!

Os homens não querem perder o que está escrito nas comandas dos circos:

Fechem os portões, bebam, dancem, comemorem a vida e paguem na saída!

Há muitas dores no coração de Santa Maria.

Santa Maria, rogai por nós!



Valéria Áureo

30/01/2013


Fogos de artifício são tóxicos para os seres humanos e para os animais. Os fogos de artifício produzem fumaça e poeira que contém vários metais pesados, compostos de enxofre, carvão e outros produtos químicos nocivos. Bário, por exemplo, é usado para produzir cores verdes brilhantes, apesar de serem venenosos e radioativos. Compostos de cobre são usados para produzir as cores azuis, mesmo contendo dioxina, que tem sido associada ao câncer. Cádmio, lítio antimônio, rubídio, estrôncio, chumbo e nitrato de potássio também são comumente usados para produzir efeitos diferentes, mesmo que eles possam causar uma série de doenças respiratórias e outros problemas de saúde.

A Palavra na Era da Imagem



- Menina, diz a mãe, vá brincar!... Vai ficar com as pernas atrofiadas, tanto tempo no computador... Vive trancada nesse quarto, parece um caracol.
Imagina!... Eu me olhava no espelho, na tela refletida do monitor e não via nada diferente das outras meninas... Via dentro das águas dos olhos vertigens o que a boca não descrevia; a mim, à imagem e semelhança de Deus, a quem nunca vi, de fato, só mesmo manifestado na arte... Uma imagem vale mil palavras; uma palavra descreve uma imagem ou mil e uma em tantas noites, mesmo que depois eu fique em silêncio, calada para o resto da vida...

O pai resmunga: - Deixa a menina!...

- Agora não, mãe!... Agora não! A menina selvagem, já ia bem longe dali, sempre lendo, acompanhada de pássaros, de uma tinta de magnólia escorrida
nas faces, carregando punhados de renda... Fugiu para encontrar-se com Henriqueta em Lisboa. A mãe, agoniada e tão inocente, achando que ela estava trancafiada em casa. Não compreende que agora ela navega, viaja com Gulliver. Também como ele a menina quis levantar-se, mas tem os cabelos presos ao chão e os braços e pernas imobilizados por uma porção de amarras. Está presa na rede... Sobre o corpo uma multidão de homenzinhos dança, pula, se precipita. Está certo que passava muito tempo trancada e a mãe não gostava. Que absurdo, presa, trancada, reclamava sempre agoniada... A verdade é que Lya Luft nO Quarto Fechado...
Minha mãe acha que não faço mais nada... Não leio, não escrevo, só fico no computador, navegando. O importante em navegar é não naufragar em informações efêmeras. Pois aprendi que para ser Pessoa "Navegar é preciso, viver não é preciso", mas sei bem o que quero aprender... Como pode imaginar que não leio mais? A verdade é que eu estou até o pescoço com Papéis Avulsos e Páginas Recolhidas que Machado me emprestou. Como dizer que não escrevo? Se “o que me atrapalha a vida é escrever”. Mas agora é, e para sempre, a minhA Hora da Estrela, porque também quero viver...E quando preciso, bem faço eu que repouso Perto do Coração Selvagem, onde encontro música, tecido de sons que a alma de Clarice suportava, metonímia de todas as linguagens humanas, ritmos de todos os sons... Pois danço, canto, faço música e sonho...
Fujo para me esconder de minha mãe na mata Matisse de todas as cores. Ele está ali há um bom tempo e pede para eu não atrapalhar; ilustra e me faz um ramalhete de Fleurs du mal de Baudelaire e lembra-me que é tarde e preciso me arrumar para sair. Disse Picasso que Matisse tinha um "sol na barriga", cujas cenas brilhavam com a luz radiante do Mediterrâneo. Achei muito engraçado; já tinha ouvido falar em rei na barriga; já minha mãe diz que não tenho nada na cabeça e nem na barriga, porque não me lembro nem de comer.... Eu olho escondida atrás da porta, para que ela não me veja vestida com a Blusa Romena; seria um escândalo. Ela me diz que não tenho idade nem para usar batom... Miró- me no espelho assim mesmo, vaidosa e tão sozinha como o Cão latindo para a lua. Oh!... Esqueci-me por completo d'A lição de piano. Amanhã à noite no Claire de Lune eu me dedico mais e me debruço nos braços de Debussy
Windows aberto para os olhos nunca me deixam parar de ler ou escrever! Minha mãe reclama que vivo trancada no meu quarto, não solto um pio sequer... Não percebe que estou a compartilhar dos gorjeios e não sinto fome... Já voo com a matinal Ave, Palavra! Pássaro libertado de Guimarães Rosa e todas as outras flores; Florbela Espanca-me... Com doçura, palavra por palavra e imagem. Estas todas que se encontram, se fundam, confundem, explicam, complicam, celebram interação perfeita, varando as veredas da linguagem e alcançando novo universo, terceira margem do rio na varanda. Terceira dimensão, flash, poeta e kodak do "retrato-relâmpago" no porta-retrato estático, feito de luz sobre o móvel. Imóvel, diante do computador, faço a imagem dançar com palavras sob o encanto do cursor imaginário em busca do universo paralelo... Depois, quando tiver fome, posso muito bem comer Maçãs e Biscoitos de Cézanne.
Imagina!... Presa eu?... Se com Pedro Nava navego à Beira Mar com o coração juiz-forano em seu Balão Cativo, enquanto ele ilustra Macunaíma de Mário só para me encantar. Imagina!.. Como posso estar só no meu quarto, se o Galo-das-Trevas canta e eu aprecio?!...
Já é quase manhã, eu ainda nem dormi... E minha mãe achando que estou perdendo a infância, sem saber brincar... Faço brinquedos de palavras e cores, enquanto Bandeira tremula nas telas de Volpi. Vou pisando em chão de estrelas, Estrela da Vida Inteira, hasteada no céu, só para recuperar o tempo perdido de Proust, tempo perdido diante do computador, diz minha mãe. Mal sabe ela que Proust me empresta todo o tempo diante das velas de regata, porque os vestidos das moças não atrapalham, aos olhos de um pintor impressionista, o espetáculo do mar eterno. A imagem é uma caixa fechada que Edgar Allan Poe põe na minha mão e eu gosto de abrir... Não, melhor, talvez a imagem seja um papel, um bilhete, uma carta, um Manuscrito encontrado em uma garrafa nos tantos mares que navego, enquanto eu cresço. Eu queria dizer para minha mãe que eu saio mesmo é para brincar nos quintais de Quintana, n'A Rua dos Cata-ventos, onde ando calmamente com meu Sapato Florido, só pisando nuvens, porque sou também O Aprendiz de Feiticeiro e tenho atrás de mim, ao meu encalço O Batalhão de Letras.
Se eu me cansar de escrever, porque ainda aprendo como uma menina treinando em caderno de caligrafia, descanso um pouco recostada na Pedra do Sono que João Cabral erigiu com projeto d'O Engenheiro. Muito mais cansado estava ele de ver a Morte e Vida Severina terracota dor, que todos os dias eu vejo na caixa televisiva; eu introspectiva, e a vida internética, explosiva, me fazendo sofrer. Morro do que há no mundo, disse-me Cecília e a circunferência fica, em redor, fechada...
Minha mãe diz que tenho que sair para brincar, exercitar as pernas. Já expliquei que não estou trancada no quadro na parede, na tela de plasma... Se Sangue e areia é o nome de mais uma novela que se espalha na minha sala, no meu quarto e no Iraque, eu fujo porque não suporto o sofrimento da humanidade. Não se espante... Melhor que eu Solte os Cachorros no Prado de Adélia, porque lá poderei recolher Cacos para um vitral. É isto, meninas como eu passam o Verão no Aquário ou n'A estrutura da bolha de sabão, procurando peixes e caçando borboletas, assim me disse a Lygia.
Tenha à mão, assim como eu faço, um Cursor Virtual de palavras penduradas nas paredes feito quadros de Dali; Dali em diante Salvador, enquanto o inconsciente fala e ele planta a Rosa Meditativa no meu coração... Eu me salvo enquanto escrevo... Estranho ferreiro que sou, ainda Noviço, tentando fazer pinturas de letras... Muito distante do que Martins só com a Pena soube escrever. Estou aprendendo... Outros escrevem fácil, fácil, brincando, derretendo... Derretendo metais; Ferreira diz que vai me ensinar a moldar a imagem na palavra, mais ainda... estranGULLAR, desde que eu não faça Barulhos nem pise n'O formigueiro... Meninas metidas com poesias e sonhos acham que podem mexer em tudo que encontram. Fará isto Por você, por mim... Sim, por mim, por ti, Portinari... “Quanta coisa eu contaria se pudesse e se soubesse ao menos a língua, como a cor”.


Autora: Valéria Áureo
Prêmio Academia Brasileira de Letras  e Folha Dirigida - 2005

quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

Silêncio I







Há silêncio noturno vazado pela lua,
Entre a pausa do choro do recém-nascido e a rua.
Há silêncio declarado pela sensatez da boca:
Melhor calar, que ferir o ser amado.
Há silêncio no coração amargurado,
No espaço da dor e da lamúria rouca,

Na contemplação do Cristo crucificado.
Há silêncio sólido, denso no peito rasgado,
Demorada ausência de palavra ou sentimento.
Há silêncio ultrajante, insistente, cúmplice,
Pausado, doloroso, mórbido e lento.
Há silêncio de impacto, estático, compacto,
Que se dilui a cada sílaba solta ao vento...
Há silêncio na demência e na sabedoria.
Há silêncio na cabeça de quem cala,
Para ouvir melhor,  se antes ria.
Há silêncio camuflado pela tosse.
Há silêncio no que se sabe posse...
E antes nem se cogitava hipótese...
Silêncio permanente, oculto num vão
Da parede oca; ausente o pensamento.
Há silêncio no azul, no mosteiro, no sem fim do poço.
Há silêncio na vergonha e na humilhação do moço,
Depois de se pedir e se escutar definitivo não;
Tudo desfeito no fim do alvoroço, no avião.
Há silêncio judicial entre a respiração e a sentença de morte.
Há silêncio na indefinição do norte.
Silêncio nacional.
Omisso, submisso.
Há silêncio mortal.

Valéria Aureo



quarta-feira, 2 de janeiro de 2013

Sozinhez...

Foto Hubert :Trindade






Estares só, acompanhado de ti mesmo.





Não fecharei os olhos, nem um instante... Quero estar atento diante do que me apregoas, enquanto ouço o que não falas comigo... O que dizes, silenciosamente, sem palavras, tem sentido para mim.  Tão compreensível o que me retratas, no teu mutismo; impróprio se me pedes para não considerar, como se eu pudesse te desmentir o estilo e o apuro. Falas do que era para mim, antes imponderável sentimento; o tal desassossego de ter muita gente por perto interrompendo pensamentos e intuições. Eu sem poder abraçá-las, como se fôssemos velhos companheiros, ao se tornaram tão distantes. Ah! O tal desassossego da alma... Evento que nem tinha nome, posto que incerto, em que ela desatina a correr para campos vazios. Era dor sutil e miúda como inquietação em véspera de aguaceiro. Coisa desconsiderável, imperceptível nas urgências do dia-a-dia para as pessoas mais insensíveis. Febrícula, mal estar de indefinição e duração breve, mas remissiva e intermitente. Amiúde vai e vem numa cantilena de nos fazer excêntricos, anti-sociais e arredios. Coisa de coração sorumbático; maleita, banzo, cisma de gente da roça que vai se isolando aos poucos, só para ficar parecido com aqueles morros distantes, na saída da cidade. Vontade de ser sozinho, na maioria das vezes, retirante de si, para as lonjuras que o espírito alcança sem companhia... Sair, muito pouco, senão para universos em que o tempo não conta. Ver gente, menos ainda... Raramente alguma coisa do lado de fora nos diz acontecimento significativo, que não o que já vem do quotidiano, que se entorna pelas portas abertas do mundo e nos aborrece. Não tenho culpa alguma, nem sei explicar o caminho que a multidão toma; toda ela desatenta, sem querer repartir-se, expatriada, abrindo mão do querer bem.

De agora em diante bem sei que não se trata mais de solidão, como eu cria; apenas sozinhez; o que pode ser muito bom, para quem tem a si mesmo como homem de confiança e não se perde em confidências aos menos confiáveis. Melhor estar mesmo só... Útil e providencial como um silêncio respeitoso em que a alma se liberta e faz jejum de palavras e o corpo se abstém de comidas. O homem inteiro se bastando na suficiência das águas do rio e do silêncio. Não precisarei de almofadas, incenso e flor de lótus para meditar; nem de solidão para estar comigo mesmo, a partir de então. Estarei entregue à sozinhez...

Eis que tu vieste me explicar a diferença entre solidão e sozinhez. Desse dia em diante meu isolamento ficou mais rico, habitado por muitos “eus; outras vezes por “outros de mim mesmo” E, por sozinho que ficar eu nunca mais estarei em solidão ou abatido. Estimarei que seja uma sensação mais agradável e menos dolorosa que o estar plenamente sem ninguém. Apenas reluto em estar acompanhado, quando não há mais justificativa nos enganos dos outros e na falta de afeto. Mas, quando o desejo for de sozinhez, nada haverá que me impeça, pois numa multidão sempre saberei me mostrar sozinho, único, inabalável. E acolhedor para mim e para os outros, quando for preciso...

Tu tinhas me explicado a capacidade de estares só, sentindo-te acompanhado de ti mesmo.



Valéria Áureo