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domingo, 28 de agosto de 2016

Abismo de Rosas...







             


Quero quedar-me na vertente infinda
No abismo mortal de pétalas e perfumes,
Nos braços rijos, nos encantos sutis,
Nos beijos ardentes, nos afagos juvenis,
No arrojo firme da boca experiente,
Que se torna pura, natural caminho,
Do beijo pleno de plangente acorde.

Acordar perseidas, aplacar a dor...
Não me acorde antes, meu amante ,
Se do númeno aprendizado
Perscruta a minha alma, nubívago errante...

Entrego-me ao amor que também me ama,
Que me faz reinar, novíssimo sentido.
Faz-me chorar, lágrima vertida nos acordes,

Além das sete notas, que mistral dedilha...
Quero me fazer feliz, ressurgida flor,

Corola imarcescível, úmida...
Fazer minha linguagem no silêncio...
Paralipse do corpo luzente rijo
Audacioso que me alcança...                                                      

E me desmente, outrora ilha...





Entrego-me... Virtuose, em suas mãos.
Precipita-me na queda orfeica...
Oh! Meu poeta singular me toca...
Em espirais de sons me lança.
Entrego-me ao amor que também me quer,
E malmequer e rosas e orquídeas...
Que recupera célere, das ondas vertentes,
As pétalas errantes, nas cordas do instrumento
E me perfuma toda,  enquanto arranja as flores
no meu corpo de impudico buquê.

Autora: Valéria Áureo

In: Sono das Pedras

Poesias

domingo, 14 de agosto de 2016

A casa de meu pai



                              Ilustração: Internet


A casa de meu pai tem um canteiro,

Onde eu transito irrompendo um bosque.

Tem toscas janelas e uma tranca de madeiro.

Minha mão toca a aspereza sem verniz,



Tátil relevo das palavras tantas vezes ditas...

Os ouvidos tentam ignorar o clamor forte.

O olhar atravessa o fulgor, abrigado pela fresta,

Embora cada imagem desgastada ainda se repita.



Meu corpo está cadeado a sete chaves pequenas,

São oito crianças irmanadas, guardados nomes,

Cingidas num círculo de giz, no trevo da sorte.

Muitas vezes dormi débil luz na incerteza,



Sob a única lâmpada mortiça e acesa.

Na casa dos dez ignorados destinos,

Cada um com suas recônditas dores...

São constantes as coisas da casa de meu pai.



Imorredouras e de dura substância e desatinos...

Cartas, poemas e sonhos brotam dela,

A cada vez que arrebento as pesadas tramelas.

A casa de meu pai tem uma passagem secreta...



Um quarto escuro, ampliador de autoridade.

Uma coberta de lenha, uma mangueira de folhagem,

Um punhal, uma navalha e goteiras no telhado.

Muitos argumentos, mil pátrias e eu um degredado...



Os objetos constantes da casa encerram austeridade.

Na mesa de desenho há química perpétua do sangue.

Sem sair da casa de meu pai viajo alforriado

Na Larousse, no embornal de pesca, expatriado.



Longe, na Antuérpia, albergado em Flandres,

A casa de minha mãe tem sempre-vivas,

Tão pequenas que não se podem vislumbrar.

Sente-se o bálsamo, sem saber da pétala lobrigada.



Uma cozinha e uma porta promissora de interstício

Nas constantes e intraduzíveis sombras, um trifólio.

Mesmo livre todo evento me mantém ali subjugado.

Sentado em bancos, onde me pesam os ombros



Acostados no vento, no tamborete sem espaldar.

Ao sair da casa de minha mãe viajo encarcerado...

Na oração, no aroma misturado a copiosas lágrimas.

Folheio um livro autobiográfico, trazido comigo



Da improvisada estante de remoto abrigo,

Ora útil ao meu solitário e tímido ofício.

Interrompo mergulhos à beira do precipício...

Bebo em canecas de ágata azul a minha mocidade



Na sucessiva degradação do escasso esmalte...

Machucada laca na impiedosa consistência,

Das indestrutíveis e duras beiradas do tanque.

O jardim de minha mãe, que havemos plantado



Em latas de flandres, preserva o repertório.

A casa de minha mãe tem uma passagem secreta...

Sem sair da casa de minha mãe, continuo escravizado,

Na Catedral Gótica de Nossa Senhora, encarcerado.



No genuflexório, no quarto pequeno de luz apagada,

Que abriga obras de Rubens vivo abençoado...

Longe, os objetos constantes da casa de minha mãe

Encerram silenciosa e padecente docilidade.

Autora: Valéria Áureo 

Poesia Publicada em Entrelinhas Literárias - Antologia Scortecci de Poesias, Contos e Crônicas 
Scortecci Editora 2011
pags 362 a 369 




quinta-feira, 11 de agosto de 2016

Mergulho





Atobás, gaivotas e fragatas
Oriundas do mar, além da ponte, vindas da ilha, 
Chegam-me em ternuras, em espirais de vento;
Elas me encontram frágil, arenosa montanha,
Esculpida de ondas, na baía da Guanabara.
Mesmo próxima da praia e da vida distante,
A geografia do Rio nos aproxima e nos separa
E me invadem palavras incomuns, com definição estranha
Sob a proteção desta invisível e submersa quilha,
Que me encontra, nau adormecida, na linha do horizonte.


Esquecida, deteriorada e úmida, ao relento

Chegam-me palavras tuas, de vento, em espirais;
Apontam-me, convictas, os portentosos brandais.
Semeiam meu extenuado espírito, fazem-no como antes...
Não mais extasiado e hirto nos inóspitos mirantes.
Eis que a poesia se oculta no mar inconstante
E vem se expor nua e tênue no Costão da Urca,
Onde o caminho ambíguo da praia se bifurca,
Na oposição do Leme e da Marquês de Abrantes
E me refaz perfeita, na Lagoa Rodrigo de Freitas,


Onde os ventos fortes têm as espirais desfeitas...

Pedregulhos, cascalhos esquecidos, pêndulos de palmeira.
Meu coração vagueia livre pela Praia da Ribeira,
Elaborando devaneios, vagando tímido em areais distantes...
Decolam aviões, pousam garças leves e vibrantes,
Em voos tão próximos, de pássaros que também avistas...
Ouço palavras fortes, palavras de aço, como adriças,
Que a vela do barco içam, ao rumo certo dos navegantes.
Abandonada a alma, outrora, ao relento, agora escuta...
Vindas da ilha, as palavras tuas, ternas, escritas no cais,


E erguem-me, para que a alma enfim se abrande
 

E siga, finalmente, em calma refeita, adiante,
Em harmonia uníssona dos aplacados vendavais.
Hoje alcanço alas de árvores centenárias,
Pés de abiu, beira-mar... Estação das barcas,
Que avisto e me encobrem do corpo as marcas:
As físicas, as lendárias, as imaginárias...
Invisíveis, cabos de aço e remotas amarras
Dos caiaques, de barcaça, de tosca canoa,
Que vislumbro ao longo da contígua Lagoa.


Vejo estações, barcas, navios e amendoeiras,

Que submergem nas águas límpidas das ilhotas.
Atobás, bem-te-vis, fragatas e gaivotas
Em bandos, voam em incontidas e aéreas farras,
Sobrevoando íntimos, o arquipélago das Cagarras...
Carregam alvissareiros, nas asas as sílabas errantes,
Que se dispersam em espaço e mares navegantes,
Trazendo à tona o espírito flutígeno, que nasceu magoado.
Sonhos leves, mergulhos, pelos ares e mares se vão:
Tuas palavras supersônicas decolam livres do Galeão, 

Em voos íntimos, para meu coração pacificado.
 
Autora: Valéria Áureo


Antologia literária- 2016 - Prêmio Rio De Palavras 450 Anos de História
Litteris Editora
 



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