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quinta-feira, 18 de dezembro de 2014

Selfie no Espelho



                                                                

A vida só não basta;
Precisa de arte para ter graça,
No aperto do vagão, no preço da passagem, na Barca...
 - Chuta! Grita o moleque... Ataca!
O corpo esguio balançando no travessão!
Saltos, dribles por instinto, teima e vocação.


Do outro lado da ponte, na contramão, há suor e pobreza.
        - Segura! O beque!Aí... Beleza!
Fazendo da linha a defesa,
Com fé, água benta, Igreja da Conceição.

O menino sonha com um pai levando-o pela mão:
        - Vou ser Zico, Neymar, Pelé, o craque!
A figurinha difícil do almanaque!


Ah! O domingo é maior: é feito de esperança,
No terreno baldio, na chuva, no barro, no sol,
No campinho de futebol,
Onde a bola dança...


Todo menino é igual: na magreza, no olhar para o infinito,
Nos pés de redemoinho, na bola de jornal; ao som do apito,
No interminável grito: - é gooooool!


Bola de papel, bola de meia, na grama, na lama, na areia,
O menino busca o pai: dribla, faz jogada, dá trivela,
Dá finta, volteia, dá rabo de arraia, cambaleia.
Bicicleta! Pedalada! Carrinho! Rasteira!...
Pula, se estica, sua e faz cara feia.


       - Deixa pra mim, eu vou! Eu “pego ela!...”
Sangue na veia e azougue na canela...
Entusiasmo e um passe acrobático
De tabela.
No contorno da camisa o suor faz despontar
A magreza e a tíbia costela.


No beco o som sobe o Morro do Céu.
No jogo de domingo o menino se destaca,
É rei.
E marca: um, dois, três...
       - Três? Quero música no Fantástico!
Festa na Cantareira...
Créu! Créu!
Com direito a replay.
Vou postar no Instagram!
Vou mandar pras minhas fãs!

A meninada zomba, ri, comemora a mocidade,
Tendo o abandono por cumplicidade.
Galopando nos raios, sem arreios; bonitos, feios...
Eles vão.
O menino ensaia a celebração do gol:
A dancinha, o Blonder, o corte de cabelo...
Para se distinguir, do que é comum, igual, de onde veio,
E não ser apenas mais um, ou apenas o do meio.

     - Vou jogar na Seleção!
Vou jogar no Barcelona!                                                                                       
Assinar contrato, deixar de ser carona.
Viajar de avião, conhecer o mundo inteiro.
Vou ganhar muito dinheiro!
É...  Conhecer meu pai!
Dar uma casa “pro veio”...
Carrão e sucesso com “as mina”
Smartphone. Camboinhas todo ano.
Relógio... Cordão. Cabelo “estiloso”
Beckham. Cristiano Ronaldo. Moicano.
Demais... “As mina pira!”
Vou ser jogador sério.
Dono da braçadeira de capitão.
Ah! Quero ter um celular,
Fazer selfie no espelho.
Ser o titular,
O artilheiro.
Benzer do mau olhado o pé, a perna inteira,
Fechar meu corpo, proteger o meu joelho.

     
E sonha driblando a pobreza com chute certeiro:
      - Vou ser campeão!
Acabar com a penúria, retrato 3X4,
Desviar a bola que vem de graça,
E bate na trave da primeira divisão.



No ritmo das pernas velozes, a vida não pára e vai...
Treino. Olho no Barça, olho na taça e ouro na mão:
Ter um trono na “pátria das chuteiras”
O automóvel, a ostentação, a cabeleira,
Enquanto a solidão goleia, com pé sujo,
O asfalto, a rua, o Morro do Caramujo,
Desfazendo as ilusões dos títulos e campeonatos...

São tantos Zezinhos, Manéis, Renatos...
São todos filhos de Deus: veteranos e novatos,
Sem identidade, sem paradeiro.
Buscando a todo custo a vitória,
Confiando na fama,
Para elucidar o anonimato.


Pulam, rolam, cospem, correm, batem.
Voam... Gritam, xingam, vivem a infância.
Nas várzeas os berros diminuem a distância
Inventam técnicos paternais a dar conselho,
Para desfazer da família o laço abstrato.


Nos campos das comunidades, dos orfanatos:
Pretos, brancos, toda cor, cabelos caracóis; santinhos,
Todos repetem a mesma história.
Todo menino vive e sonha com a glória,
A figura do pai, a origem, o autorretrato...
A selfie no espelho 
  Autora: Valéria Áureo 

Prêmio UFF 2014- Menção Honrosa- Poesia