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sábado, 31 de dezembro de 2011

Adeus







        Agora que estavam tão próximos do fim, mais apegados estavam um ao outro, sentados lado a lado, no pequeno espaço de frente do quintal. Olhavam horas a fio a mangueira e a verdejante videira, fiscalizando cachos de uvas destinados aos netos de fim de ano. No extremo da idade, já tão velhinhos, se assemelhavam a duas crianças de mãos dadas, assentados depois de uma estonteante ciranda. Muito mais eles desejavam o tempo para o recomeço, cada vez que a memória trazia à tona lembranças da infância. Às vezes, passeavam enlaçados pelos dedos. Percorriam o caminho que geminava as duas casas, quando nenhum dos filhos pudesse flagrar aquela ingênua intimidade. Seco e poeirento era o quintal e as folhas da pequena parreira sob o pé de manga, que lhes servia de jardim. Que fossem muito doces as mangas e as uvas, negadas aos passarinhos e acauteladas para cada um dos filhos seus... Os pais lhes ambicionavam doce destino.
        Secos já estavam os olhos espremidos em rendas de rugas que os faziam pequenos, pequenos e melancólicos... À tardinha a escada que levava ao segundo andar servia de bancos para os gatos e os vasos de antúrios. Quando o sol era um pouco menos quente repartiam ali um café que ele preparava para ela, porque era silencioso de palavras o amor que ele lhe tinha. Era feito de pequenos gestos recentes, aprendidos na velhice, quando enfim ele pode descobrir que mais que as mágoas, tinha sobrevivido um sentimento perene, acobertado vida inteira. .
       Viviam juntos há mais de sessenta anos. Já não se podia dizer que eram duas criaturas, pois que nada sabiam ou podiam um sem o outro; nem pensar, andar, falar, sorrir ou haver o mundo. Ele trabalhara com a luz, sol a sol, noite a noite, fugindo nos desejos e nos sonhos para lugares em que ela não o acompanhava. Costumava evadir-se ao encalço dos lambaris do rio Formoso, porque ali se deixava carregar água abaixo, enquanto desaguava suas dores. Ela cuidara dos filhos, parira quatorze, perdera seis para a natureza, por destino, e também habitara nostalgias que só ela conhecia. Nesse tempo ambos andaram afastados de si, tal a dureza da vida, caminhando cada um o seu caminho. Mas sempre lado a lado, apesar de tudo. Quando ele queria, deitavam-se juntos. Quando não, ela dormia no seu lado da cama, sossegada, enrodilhada constantemente como gato de estimação em borralho. Nunca se separaram. Nem mesmo quando a desavença foi maior ou quando quase todos partiram. Mesmo os filhos.
       Agora, os dois, ali, à beira da tarde, pensavam que mesmo em meio à solidão, a vida podia ser boa e bela. Mas nada falavam, porque já haviam se habituado aos longos silêncios. Ou ele falava, gritava e ela ouvia e silenciava. Longe, apenas o canarinho cantava acima da saudosa gritaria de crianças, que tinham crescido. No mais o silêncio para sempre.
      Antes da noite eles dormiam. Um dia e outro e outro.  Eles viram passar o tempo, como se fosse uma tempestade forte e, até então, se tinham de mãos dadas, quando os filhos não olhavam invadindo essa timidez. Aos poucos souberam que haviam de se deixar. Souberam que, em breve, seria a sua hora. Hora única. De cada um. Que, depois de toda uma vida lado a lado sem quase se falarem, seguiriam separados, quando bem o decidisse Deus. Quando pensavam nisso, prometiam se reencontrar...
       Mais uma vez, para eles, inúteis eram as palavras. Pois se adivinhavam, mutuamente, os pensamentos e o temor de saber quem iria partir primeiro.
      Quando a noite caiu e uma imensa lua clareou a terra, se deixaram ficar, mais um pouco, ali fora, povoados pelo sentimento da separação.
       Assim que ele se foi, mais silenciosa Wanda ficou... Ela está esperando uma lua inteira brilhar nos seus olhos azuis, trazendo-o de volta.

Valéria Áureo

quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

Sortilégio dos Signos


 





          Leonardo era leonino, sonhador e sentimental; ao menos era o que dizia a empregada da casa, quando se referia ao patrão: meio atrapalhado, mas muito boa pessoa, assim o resumia. Ele não amanhecia o dia sem o café quente no copo e a página do jornal aberta no horóscopo. Hábito que adquirira com a namoradinha da adolescência, que gostava de adivinhar o futuro, perfumando o presente com incenso.
           Harmonia com libra... Momento propício para projetos e definições de natureza sentimental. O amor cruzará sua vida no dia de hoje. Fique atento. Naquele dia as previsões eram favoráveis para um encontro de dois signos que formam o par perfeito. Era o que constava na tira fina de previsões para quarta-feira, 20 de outubro de 2010, no jornal. Dia de topar com as imagens esfumaçadas e telúricas; leão e as veleidades do mapa zodiacal em perfeita conjunção com libra. Não era todo dia que as previsões eram tão otimistas... Hoje não! Enfim era o dia de encontrar o amor. Estava escrito em seu mapa astrológico, o prognóstico de uma oportunidade alvissareira. Tratou, pois, de se arrumar o mais detalhadamente possível: barba por escanhoar, resolveu com um cuidado esmerado, imaginando o toque da pele no rosto da mulher que encontraria; quem sabe no elevador, no metrô, nas escadas do Ministério do Trabalho. O corpo inteiro para conferir diante do espelho da porta do armário. Detalhes para conferir nas unhas, nos pelos do nariz e das orelhas. Dentes caprichados na escovação sistemática e visitas constantes ao dentista. Por isto não fumava e nem tomava café. Era agradável ter dentes que chamavam atenção pela brancura e alinhamento. Poderia se dizer que eram perfeitos. Adornavam o sorriso escancarado do sujeito sempre bem falante. Poderia se resumir que ele era um homem muito simpático e bem humorado. Mesmo assim, esperou quarenta e três anos, para que aparecesse um sinal, uma presciência tão otimista, como a deste dia. Finalmente... Hoje era a sua grande chance. Escolheu com cuidado a roupa; discreta e elegante. Foi comedido no perfume. Colocou comida para os peixes no grande aquário da sala...
        Eliana era libriana e muito  realista. Bem sucedida na profissão, foi deixando o tempo do amor passar. Quarenta anos... Foi o período que consumira para se tornar uma executiva, emancipada, líder, livre e totalmente independente. Desativara o relógio biológico por muito tempo, para que os projetos de sua vida profissional não descarrilassem. Não queria filhos, porque preferia debêntures. Não seria bancada por ninguém; assim planejou sua vida, com um cronômetro de sensatez e controle de todas as emoções. Hoje, ao ler o caderno de economia, tomou ciência da estabilidade da moeda. Tudo sob controle, pensou. Nada que pudesse provocar inquietações e crise no Mercado Financeiro. Comprava ações da Petrobrás, comprava euros e diversificava as suas aplicações. Para descontrair foi ao horóscopo. Riu... Par perfeito... Ainda acreditavam nisto? Que tolice! Leão e as veleidades do mapa zodiacal em perfeita conjunção com libra. Momento propício para projetos e definições de caráter sentimental. O amor cruzará sua vida no dia de hoje. Fique atento. Tornou a rir e fechou o jornal. Amarrou os cabelos de forma displicente, tomou um banho, escolheu uma roupa formal e colocou o perfume de sempre. Colocou comida para o gato siamês, Amour, que lhe fazia companhia.
      Eliana e Leonardo pegavam a mesma linha no mesmo horário; o mesmo Metrô, na Estação Catete em direção à Zona Norte. Destino... Centro da Cidade! Na cabeça dos dois repetia-se a previsão do horóscopo do dia: O amor cruzará sua vida no dia de hoje. Fique atento. Leão e as veleidades do mapa zodiacal em perfeita conjunção com libra... Eliana e Leonardo  nunca entraram no mesmo vagão do trem.

Valéria Á. Cerqueira