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sábado, 28 de maio de 2011

Minha Mãe


Desenho Digital     por Valéria A. Cerqueira

                            Intervenção na Imagem               





Minha mãe envelheceu e se tornou menina
E se transformou em pequenina.
De cabelinhos brancos, encurvadinha,
Vestida de  avó, de contos da carochinha...
Brincando se pôs a desfazer a vida,
Voltando ao começo da biografia.
Inventou a máquina do tempo,
Descosturando em fiapos os dias,
Apagando da página, letra a letra,
A octogenária e esmaecida escrita.
Passou a rir de tudo, incompreendida
Em anacrônica e infantil alegria,
O que na mocidade nem fazia.
Reverteu a noite em dia,
Pondo a família  em vigília.
Aprisionada na luz da lua
Trancou-se no quarto do passado
E doravante habita a inocência
Da reencontrada infância.
Acendeu um clarão na noite,
Por onde vagueia sozinha, 
Não deixando ninguém dormir.
Busca a mãe, o pai, a tia,
Na companhia da filha,
Para seu reiterado monólogo
De medo e solidão.
Chamando pelos “meninos”: os de longe...
Onde estarão?
Que os de perto, mistura os nomes.
Minha mãe envelheceu e se tornou menina
E num breve e dolorido  instante...
Transformou-se em pequenina Lua,
Na solidão do quarto minguante.

Autora: Valéria Áureo
In: Sono das Pedras
06/09/2010

quarta-feira, 25 de maio de 2011

FEMININA






por Valéria A.Cerqueira
Intervenção na Imagem





Ela  ronda o amor,

Mordiscando mel...
Ajeita os cabelos num ninho
Sob o chapéu.
E digere o amor...
Sublinhando com a ponta da língua
A palavra FELICIDADE
Escrita na xícara de café.


Valéria Áureo

terça-feira, 17 de maio de 2011

Canção para dormir.



                               Arte Digital: Valéria A.Cerqueira


Araras azuis ousam varar o céu,
Pousam no meu coração mandovi;
No frondoso cambará, na copa da árvore,
Onde eu nasci, onde voei, onde pousei...
Pequeno pássaro bem-te-vi, num ninho,
Onde quis... Onde eu não quis dormir.

Folhas de lençol aberto sobre relvas
Resvalam em vigílias noturnas,
Feixes de aromas malvas que senti.

Nas insônias em desvelo, embaladas,
De caixas de farmácias exauri

O triste canto do uirapuru...

No sono cândido, desbravo selvas,
Sem poder, ao menos te ver aqui...
Nas noites claras, arrasto o pé ligeiro,

Querendo o pássaro livre, salvo e altaneiro,

Enquanto drágeas se revezam com estrelas.
Procuro, quero, preciso saber tudo de ti.


Um ninho de ave no peito... Um colibri...
Não conseguir dormir... Passo desperto.
Num voo, uma pena, uma noite casta,
Um pio, um gorjeio travado, a dor se arrasta,
Corta a árvore, corrompe a mata,
No risco da grosa. No fim... No deserto.

Vejo acima de todo azul o céu, a Terra.
A quase extinta tinta tua, clorofila.
Há asas sobre mim, qual lua; cintila a serra.
Viola o bosque, ferido pela arma que o caule ofende...
Perco o sono que roubei de ti, que ora me rende
Em desbotado e ofendido extenso anil.

Não posso esperar da manhã o dia,
Para ver o remanso, a água, os rios.
Suave traçado de relva exposta.Cotovia.
Quero para sempre a visita, toda ave. A tua...
À vista dos belos pássaros, os pios,
Onde eu fiz ninho, descansei e vim.


No pouso, no voo, no galho,
A ave que vai sem estrela enfim,
Na oculta lágrima orvalhada, espalho,
Nas sombras, nas insones madrugadas.
É noite que eu não quis dormir.
Araras azuis ousam varar o céu em mim.

Pousam no meu coração mandovi.
Pássaros, estrelas, meninos com flores,
Árvores, folhas e sol nascente...
De douradas fímbrias, luminescência entorpecente.
É madrugada; o sono acalma enfim a dor
De tanta luz que absorvi de ti.

Valéria A. Cerqueira

domingo, 15 de maio de 2011

Vespa & Versos

                       
              Arte Digital em desenho: Valéria Áureo

 
Verso... Mal o tenho pronto; sofro no início, ainda sendo meio,
Depois de uma enxurrada de nada, o silêncio me deixa;
tal como veio.
Impetuoso, quero expô-lo aos toques, nas maciças aldravas,
Evocado às portas rudes e fechadas de remota queixa.
Arrastado por uma cheia de suaves e miúdas palavras:
Ora teclado, ora caderno, ora lamúria, que desajeitado leio.

Vou fazendo a rima aos poucos, no exíguo e escuro elevador,
Contornando a água que lentamente veio pouca e turva...
Ora de amor, ora de alagamento, ora de tardios encantos,
Em parágrafos, títulos, redondilhas e sílabas na curva,
Que docilmente imagino, escrevo, apago em disfarçado pranto.
Na rua, na sala de visitas, no hall, no fim do corredor...

Passam por mim a estrofe, os versos livres cata-ventos,
Como barcos, telas de plasma e dourada arte criptográfica,
Quando ainda nem há luz e logo se insinua tíbia sombra,
Dormitando nas linhas do papel, sob a caneta esferográfica...
Verso não quer vir, mas enfim me arrebata e tomba.
Quantos deles diluídos em lágrimas?... Rios lentos.

Separo do trigo o que não quero e jogo no ribeirão,
Na mudança das monções, nova direção do vento;
Aguardo a revisão, no rascunho de um texto inacabado.
O ponto e vírgula e a reticência submetem-me atento,
Como dócil e constante; benévolo servo subjugado:
Alteração de rumo a nado, parágrafo e travessão...

Em que sol é posto e ao final se reflete nas conversas,
Escrevo, tendo o derradeiro amor como inicial pretexto...
Ideias românticas a amontoarem-se em desarrumada pilha.
Semana inteira de domingos, fora do missal, fora do contexto,
Canto fora da época, como a ardilosa raposa em armadilha...
Escritos de amor, sempre às vésperas, ao contrário... Às pressas.

Circunstanciais, sibiladas conversas... Não faz mal!
Coloco flores na jarra, decifro sussurros, arcanos dos cofres:
Viro o casulo do avesso a procura do indescritível poema,
Vespas aveludadas voam velozes em apenas sete estrofes,
Afoitas articulando nos ares, sinuosas... Será que vale a pena?
Encerro-as no alfinete imperceptível e decisivo do ponto final.

Pontos reticentes espetam as asas invisíveis das abelhas no mural...
A sétima estrofe fica abreviada a três tímidos versos.
Acaba suave, volátil, veloz, mas muito desigual.

Autora: Valéria Áureo

Enquanto dança, a vida passa...

                                                             Intervenção na Imagem
                                                              Valéria A. Cerqueira






- Meu Deus... Eu quero dar o mundo para ela... Ele pensou, num breve lampejo dentro da alma e tomou nos braços a moça mais bela do baile, para dançar.


A vida devia ter ficado assim, do jeito que era pra ser. Mas não, o sujeito inventa de mudar a simplicidade e toma gosto pelo que é incomum!... Dá de desejar o que vê, ainda mais se revestido de formosura. Imagina que precisa daquilo para continuar respirando. Ambiciona o que não lhe cabe, por desproporção do que tem e do que espera ter! Força pouca, ou quase nenhuma ele fazia aos dezoito anos... Era mais natural, daquela forma como Deus é servido, na sua ponderação e justa medida de fazer as coisas perfeitas; nem mais, nem menos: ser nascido com satisfação para viver com o que é comum e pouco. Pouco não, suficiente! Consideração e apego ao chão, simplesmente, já seriam a conta exata de acertar na vida. Que pedisse ao menos um quinhão de terra e força para o afadigamento, era o que toda a família esperava dele. Do resto se cuida e dá-se jeito, diziam. Nada de ambição de recolher com os olhos de cobiça aquilo que não é para ser seu; se é seu destino não almejar o que Deus não lhe deu, por decisão própria. Aliás, lhe deu mesmo foi o bastante: saúde e sonho demais. Muito mais do que lhe teria serventia qualquer outra qualidade daquilo que haveria de sobrar. O que mais, se nasceu macho para mandar no mundo? A mulher, fêmea para mandar na casa, também já teria o bastante destinado, para se dar por contente. Isso se ela fosse do seu agrado e competência houvesse na cabeça dela, mesmo que fosse só para governar um lar. Mas ele deu de querer mais, muito mais que as terrinhas e poucos bois. Queria ser doutor, dizia para o pai pouco resignado, temendo ficar sem o único filho homem em casa.


É... Eu quero dar o mundo para ela... E a música soando em seus ouvidos. Ele rodopiando, rodopiando, rodopiando, enquanto a música tocava.


O pai bem que tinha argumentação para reter aqueles sonhos esquisitos de afastamento da casa, buscando sei lá o que, do lado de fora do mundo, porque a tal Universidade Federal era longe, bem longe dos seus olhos espremidos em duas tristezas: o tempo e o esquecimento. Parece que o moço não ouvia seus queixumes...


Dava-se o velho de repetir a mesma ladainha: Olhe, meu filho, dê-se por satisfeito da bênção, sim senhor! Nunca blasfemar da vida, é muito importante. Pois não é? Não vê que brota do chão o suficiente que é de chuva e sol alternando estação, estio, colheita e provisão? Enfim, tudo o que é possível para os seus braços recolherem e o que pode conter sua boca; mais que isto é desperdício. É abuso que não é fome; é gula. Nem é humano, nem é decente. Veio aqui com o que é justo merecimento e consideração de Nosso Senhor! Caso ambicione mais que a barriga e a alma podem conter é por questão de exibição e desejo de despertar invídia alheia. No final, nada disso conta. O caminho é sempre o mesmo para todo mundo. O que está exposto nas prateleiras é deslumbramento e inutilidade. Vai se perder na ilusão do que está longe? O que quer, você já tem e não se dá conta. Não precisa ir tão longe. Dê-se por satisfeito com mão boa para a capina.


- Mas eu quero dar o mundo para ela... E a moça se aninha em seus braços leves, leves, leves...


Escuta, filho! As duas coisas caminham juntamente: o trabalho e o sonho. Ter mão boa pra plantar e pra repicar a viola; isto é variação de destino das coisas. Duas coisas distintas: o que é difícil e o que é suave na vida. Porque dá pra ir compensando uma empreitada com a outra. Do mesmo modo que a tristeza só tem cabimento, porque depois ela se vai e dá espaço para a alegria. As mãos e a cabeça servem paras as duas. Dor e contentamento. Rudeza e leveza combinadas na igualdade, sem desperdício da função. De manhã a mão é pesada, atarracada e grossa para o eito e a enxada. De noite viram plumas as pontas dos dedos. Seja para a viola, seja para a mulher amada. Isso é bastante para possuir de seu. O campo para ser amainado e a melodia para se encantar. É só dar tempo ao tempo... Quando o corpo estiver aprontado, sem ao menos esperar, de bom grado lhe cai uma paixão por uma cabocla e os suspiros encaminham suas ideias pra fazer vida com ela, trabalhar e alimentar a meninada. Ah! Porque isso é certo, que nem o dia clarear depois da noite. Vai vindo um depois do outro, um depois do outro, um depois do outro... Quando vê, já são oito!


De seu são mesmo
a mulher que Deus destinar e toda essa filharada e não de outrem, porque não lhe cabe dar conta da vida alheia, Deve guardar o conhecimento, as vontades e o respeito aos dias da estação e ao cuidado deles, pois haverão de crescer e deixar tudo igual, com o passar dos anos. Sim, como era no começo: você e ela. Tal qual foi comigo e sua mãe!


-Vou dar o mundo para ela! E o baile prosseguia na cabeça, até quase de manhã. Tudo girando...


Mas sujeito, o senhor já dançou muito nessa sua vida. Abre o olho! Que depois da festa de São Roque é tempo de plantar... Depois das festas de São João se apresse seu cabra, pois é tempo de colher... O resto é pura ilusão de mocidade. Qual! Doutor...


- Ah! Vou dar o mundo para ela!... Rodopiava o moço, imaginando o futuro.


Rapidamente e num giro, a manhã seguinte chegava depressa e embarcava o moço no ônibus que o levava para Niterói, a fazer a continuação desta sua história em cidade maior, muito distante dos limites do mato. Hora de deixar para trás a moça, o primeiro amor e as espirais da ilusão da mocidade e enfurná-lo na Universidade, que ali era lugar de escrever um futuro diferente. Questão de deixar no passado e na memória os falares, o trigueiro da pele da moça, o cigarro de palha e a reminiscência da roça e ir se acostumando com os hábitos citadinos de pegar condução, respirar o ar abafado da vaga de estudante, o cheiro da biblioteca e a refeição apressada das lanchonetes. Nada parecido com o leite tirado da vaca da fazenda do pai e a broa de milho com erva-doce que Tuniquinha preparava. É, tudo por culpa de querer mais que a vida tinha ofertado, porque não era rapaz de se acomodar com o que tinha. Pois insistia em dizer que nada tinha de seu, mas do pai, a quem devotava veneração. A minha vida, dizia, esta eu tenho que plantar, num sítio bem longe daqui; ver crescer e só mais tarde colher... A cabeça pedia mais que o matiz da invernada sobre as folhagens; mais que o mugido das vacas leiteiras e a sela do cavalo.A cabeça sonhava grande e deixava longe a menina no baile, girando sozinha, enquanto o rapaz viajava para Niterói, em busca de uma carreira e de futuro mais promissor que a fartura e sazonais das terras em Minas. Ambicionou voltar doutor e se casar com ela. Nos seus planos estava sim, disposto a voltar para os braços dela e continuar aquele rodopio do baile, pelo resto da vida... É isto, voltar assim que puder...


Eu quero dar o mundo para ela!... Era no que pensava, enquanto assoviava baixinho e andava lentamente nos corredores da Universidade Fluminense, entre uma aula e outra.


É, a vida é mesmo engraçada; o sujeito inventa de mudar a simplicidade e toma gosto pelo que é incomum!... Ser um doutor! Imagine! Dá de desejar o que vê, ainda mais se revestido de formosura. Quem diria! Doutor especialista em coração...


Cinquenta anos passados. Doutor de coração. Cardiologista! Um excelente cirurgião. E passou a vida inteira abrindo, remendando e costurando os corações, como se quisesse encontrar a si mesmo dentro deles. Nunca mais houve tempo para dançar, nem voltar para os braços dela.

        
  Autora:   Valéria Áureo
                                                                           

Texto premiado pela Universidade Federal Fluminense 
e publicado na Coletânea dos 50 anos da UFF
17/12/2010