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sábado, 6 de agosto de 2011

Oh! Triste fado meu...




- Meu rapaz, o que trouxe com você, no bolso do velho casaco?
- Papéis, penas, alguns rabiscos; rascunhos de uma carta dobrada no peito... E uma dor absurda de ser brasileiro. Nunca imaginei que algum dia tivesse coragem de pensar assim. Mágoa... Dói ser brasileiro!É sentimento de ser indefeso e tolo. Tenho ideias para uma carta ao bom e velho Pero Vaz: este que iniciou a sua peça com esmero e respeito, dando conta de suas impressões sobre o descobrimento:
Senhor,
posto que o Capitão-mor desta Vossa frota, e assim os outros capitães escrevam a Vossa Alteza a notícia do achamento desta Vossa terra nova, que se agora nesta navegação achou, não deixarei de também dar disso minha conta a Vossa Alteza, assim como eu melhor puder, ainda que -- para o bem contar e falar -- o saiba pior que todos fazer!
Todavia tome Vossa Alteza minha ignorância por boa vontade, a qual bem certo creia que, para aformosentar nem afear, aqui não há de pôr mais do que aquilo que vi e me pareceu.
Da marinhagem e das singraduras do caminho não darei aqui conta a Vossa Alteza -- porque o não saberei fazer -- e os pilotos devem ter este cuidado.
E portanto, Senhor, do que hei de falar começo...”
Ouso interromper, caro Senhor!... Afirmo ao distante autor de remota missiva, que também aprecio contar e falar. Também desejo por à vista o que vejo e me parece. Dar-lhe conta sem aformosear ou enfear os acontecimentos. Aliás, desejava fazê-lo há mais tempo; desejava dizer dos meus sentimentos pessoalmente, aí mesmo em Portugal. Qual!... Impressão de assombro ora me invade!... Se tão bem navegavam à época dos descobrimentos, sinto lhe dizer que das singraduras em mares nunca dantes navegados aos dias de hoje, deu-se grande transformação. Pensei em ir à boa terrinha, não como se fazia outrora, por mares bravios. Há muito, vai-se com conforto pelo ar! Ao menos é o que dizem. Mas o caos aéreo me impediu, meses a fio, de fazer tal empreendimento pelos céus. Quando tudo se ajeitou e o medo de queda de avião se aquietou no peito, tentei ir a Portugal entrando pela Espanha. A viagem seria mais em conta, pois ando com parcos recursos. Agruras de um pobre estudante, mas brioso em seu intento. Inopinadamente barraram-me e deportaram-me e debati-me em maus lençóis. Alegaram ser uma entre tantas medidas de controle da Comunidade Europeia... A mesma que fecha os olhos magistralmente para a “entrada” de nossa madeira e os arregala para me deter sem compaixão. Aliás, o mundo sempre me surpreende. Cá os europeus e tantos outros povos de qualquer parte do mundo sempre foram generosamente acolhidos... Lá, tive empecilhos e aborrecimentos. É isto; não me deixaram entrar. Brasileiros sempre foram acolhedores, ou fáceis de enganar... Não fui eu quem o disse. Foi Pero Vaz. E ainda o são! Desde a época dos cordiais e receptivos nativos. Sustento-me nessa convicção com argumento de sua própria lavra na brilhante missiva, meu caro Senhor:
... Andariam na praia, quando saímos, oito ou dez deles; e de aí a pouco começaram a vir. E parece-me que viriam este dia a praia quatrocentos ou quatrocentos e cinqüenta. Alguns deles traziam arcos e setas; e deram tudo em troca de carapuças e por qualquer coisa que lhes davam. Comiam conosco do que lhes dávamos, e alguns deles bebiam vinho, ao passo que outros o não podiam beber. Mas quer-me parecer que, se os acostumarem, o hão de beber de boa vontade! Andavam todos tão bem dispostos e tão bem feitos e galantes com suas pinturas que agradavam. Acarretavam dessa lenha quanta podiam, com mil boas vontades, e levavam-na aos batéis. E estavam já mais mansos e seguros entre nós do que nós estávamos entre eles.
Tenho cá em meu bolso surrado um mapa, para que alguém me mostre o que é o meu país, ou o que é a África, ou a América Latina; é porque não os compreendo nos livros publicados nos Estados Unidos. Não os compreendo entre quatro paredes da antiga biblioteca pública. Muito menos no noticiário! Confundo-me e imagino estar ficando velho. Pior ainda; temo estar ficando louco... As enciclopédias obsoletas aprisionam a geografia em papel acetinado e tintas fortes, como se tudo estivesse muito bem; enquanto isso a paisagem pálida da Aquarela do Brasil viaja clandestinamente carregada em toras de madeira para a Comunidade Europeia, para além de nossas fronteiras. Na Internet divulgam que a Amazônia não é território brasileiro. Daqui vai a madeira, repetindo a destinação extrativista do pau-brasil; assim vão os minérios, as espécies raras, a dignidade do povo... Estou cansado! Dispersam gratuitamente a flora, a fauna, a biodiversidade como coisa de ninguém...
Ando abatido, desanimado; ironicamente um trocista recomendou-me um bronzeador para disfarçar minha palidez: um produto à base de urucum. Alegou-me o pândego ser o produto o que há de mais moderno e o mais apropriado para o meu caso: meu descoramento é de pânico e medo, zombou. Acho que sua intenção é me matar. O bronzeador à base de urucum é produto francês PATENTEADO. Diante disso devo advertir que, como eu, os tupis, guaranis, aimorés e todos os outros não foram advertidos. Ah! O Guarani... Se o soubesse à ocasião, ficaria rubro de ódio e vergonha. Também eu me sinto um índio ludibriado a custa de miçangas e apitos:
Eu ingenuamente argumento: existe planta mais simbolicamente brasileira que o urucum? Tipicamente “coisa" de índio? Pobres aborígines!... Então vejamos em carta do punho do ilustre Senhor, o estranhamento que a bizarra planta causou ao europeu: “Neste dia os vimos mais de perto e mais à nossa vontade, por andarmos quase todos misturados: uns andavam quartejados daquelas tinturas, outros de metades, outros de tanta feição como em pano de ras, e todos com os beiços furados, muitos com os ossos neles, e bastantes sem ossos. Alguns traziam uns ouriços verdes, de árvores, que na cor queriam parecer de castanheiras, embora fossem muito mais pequenos. E estavam cheios de uns grãos vermelhos, pequeninos que, esmagando-se entre os dedos, se desfaziam na tinta muito vermelha de que andavam tingidos. E quanto mais se molhavam, tanto mais vermelhos ficavam.”
Fico sem entender muita coisa e perco o sono... Quem sabe uma valeriana de medicina farmacêutica me fizesse dormir. Recorro aos industrializados na hipótese de não mais encontrar camomila, erva-doce, erva-cidreira nos quintais. Sou um pobre romântico e ainda choro como um desvalido menino, quando escuto o Hino Nacional. Muitos riem de minha ingenuidade. Não me importo.
O cartógrafo desavisado faz o mapa da recente geografia. Os comerciantes vendem a América Latina em tiras de papel nas bancas de jornal. Ouvi dizer que custam cem pesos... Duas medidas... Sem peso na consciência, meu Senhor.
Moro à beira mar, equilibrando-me na linha imaginária da Terra e oceano, onde navios vieram aportar.. Como os grandes navegantes, penso desbravar os limites de continentes e compreender as intenções de nossos amigos. Guardo dor de alma provocada pelo orgulho da Pátria ferida, se é que me entende. Outrora os poetas costumavam se lamentar em versos e em prosa. Alguma coisa mudou, mas ainda hoje se ouvem os lamentos do Navio Negreiro vindos do mar reverberando pelas ruelas e morros. Gritos sob o retumbar dos tambores e os estampidos. A verdade é que já não consigo mais distinguir,  onde estão os limites; os da terra e os dos homens; não distingo nem mesmo os limites do Brasil.
'Stamos em pleno mar... Posso ouvir de minha janela.
Terra à vista! Gritou alvíssaras o efusivo descobridor português...
Terra a prazo! Gritos nos pregões da Bolsa de Valores... Terras em suaves prestações! Se em “minha terra tem palmeiras onde canta o sabiá”, talvez Gonçalves Dias, como eu, tenha se iludido com a Carta de Pero Vaz de Caminha. Desde que a escreveu (precisamente deste Porto Seguro, da Vossa Ilha de Vera Cruz, hoje, sexta-feira, primeiro dia de maio de 1500), meu Senhor, o Brasil vai generosamente distribuindo em saladas e mobiliários a floresta; vai saciando a imperecível gula e degustação do palmito, até a corrosiva estética dos obesos exploradores de madeiras...
Foi o Capitão com alguns de nós um pedaço por este arvoredo até um ribeiro grande, e de muita água, que ao nosso parecer é o mesmo que vem ter à praia, em que nós tomamos água. Ali descansamos um pedaço, bebendo e folgando, ao longo dele, entre esse arvoredo que é tanto e tamanho e tão basto e de tanta qualidade de folhagem que não se pode calcular. Há lá muitas palmeiras, de que colhemos muitos e bons palmitos.” ... Enquanto andávamos nessa mata a cortar lenha, atravessavam alguns papagaios essas árvores; verdes uns, e pardos, outros, grandes e pequenos, de sorte que me parece que haverá muitos nesta terra. Todavia os que vi não seriam mais que nove ou dez, quando muito. Outras aves não vimos então, a não ser algumas pombas-seixeiras, e pareceram-me maiores bastante do que as de Portugal. Vários diziam que viram rolas, mas eu não as vi. Todavia segundo os arvoredos são mui muitos e grandes, e de infinitas espécies, não duvido que por esse sertão haja muitas aves!”
Se lhe disse das palmeiras, caro Senhor, dou-lhe endereço do sabiá. Eu digo logo de seu trágico destino. Dele e dos demais pássaros: espécies nativas são embaladas em canos de PVC... (Para Viagem Contrabando, suponho)... A fortuna deles vale poucos centavos; viajam para morrer no caminho traçado por mesquinhos e ignorantes brasileiros.
Lembra-se do deslumbramento que esta terra recém-descoberta lhe causou, caro Pero Vaz de Caminha?“Até agora não pudemos saber se há ouro ou prata nela, ou outra coisa de metal, ou ferro; nem lha vimos. Contudo a terra em si é de muito bons ares frescos e temperados como os de Entre-Douro-e-Minho, porque neste tempo d'agora assim os achávamos como os de lá. Águas são muitas; infinitas. Em tal maneira é graciosa que, querendo-a aproveitar, dar-se-á nela tudo; por causa das águas que tem!”
Pois é, muitos se encantaram como o Senhor. A Amazônia brasileira me faz sofrer se a vejo esgotar-se sob o silêncio nacional... Evito os jornais... Eu me pergunto: que vozes cantam pelas aves, águas e árvores de minha pátria?... O rio Amazonas transporta minhas lágrimas. O oceano Atlântico permite o caminho inverso aos grandes descobrimentos. A viagem de volta transporta em invertidos navios negreiros mulheres para servirem ao Velho Mundo... Navios e aviões ainda transportam escravos.
Cartas do Brasil vêm e vão pelas Américas, Europa, Ásia, África e Oceania ao som de samba, enquanto os pés doloridos pisam asfalto, favelas ou canaviais. Algumas contam verdades, outras contam mentiras, enquanto “ojos” choram ao som de violões, guitarras e bandanéons.
Oh! Triste fado meu...
Assim despeço-me, meu Senhor, com o auxílio de Castro Alves em seu Navio Negreiro:
Existe um povo que a bandeira empresta
P'ra cobrir tanta infâmia e cobardia!...
E deixa-a transformar-se nessa festa
Em manto impuro de bacante fria!...
Meu Deus! Meu Deus! Mas que bandeira é esta,
Que impudente na gávea tripudia?”
Mas quem pode com essa vida e essa História, meu Senhor?
Valéria Áureo


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