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quarta-feira, 5 de outubro de 2011

Carta Antiga ou Pequeno conto Anacrônico

Intervenção na Imagem por Valéria Á. cerqueira

         

                           Rio de Janeiro,


                

         Caro amigo,






Esta semana acordei mais antiga que sempre. Andei recolhendo saudades, antecipando uma nostálgica sensação. A alma passada ao papel... Na sexta-feira fui convidada à “Casa de Machado”. Exatamente, à casa do nosso querido Machado de Assis. Recebi o convite e fui logo contar a novidade ao meu vizinho, também de apurado gosto pelas letras e a todos meus familiares. Convidavam-me e, melhor ainda, eu poderia levar uns poucos amigos. O coração já havia pressentido com prazer as recordações de uma cidade antiga. Decidi ir sozinha, pois o amor era egoisticamente meu.
A respeito do convite e do seu remetente, lembraram-me os Accioly, recentemente vindos de Engenho Novo, que muitos bairros retêm sua alma. Sejam sons, pregões, vozes das ruas. Ele, quando escreve, transmite a impressão auditiva do Rio. Freqüentemente, pelo então imperial Rio de Janeiro, apreciava contrastes na natureza e nos homens, transformando a vida em arte, recolhendo minúcias. Lembro-lhe, caro amigo, que Machado observava as belezas no tempo, porque: “ ... muitas vezes, uma só hora é a representação de uma vida inteira”. Sempre gostou de caminhar, logo depois do jantar, pelas bandas de Laranjeiras, Glória, Praia do Flamengo e Botafogo, indo a pé até o Centro da cidade, atendo-se a pequenos detalhes... Afirmo que, entretanto, “ nunca o vi” por estes lados. Verdade é que pouco ando pelas ruas. Machado fazia planos de mudar-se para Cosme Velho.


Minha vizinha, D. Antea, assegura-me que sua mãe, cantora lírica, o conheceu, em “carne e osso”. Machadinho, como intimamente o chamava, foi vê-la em um recital, no Teatro Lírico e, em outra vez, fez questão de ouvi-la num concerto no Teatro Phoenix... Pareceu-lhe abatido, agastado, naquela ocasião. Ela acredita dever-se tal abatimento ao desagrado que ele tinha com as corridas de touros, no Rio de Janeiro. Garante ter-lhe confessado não gostar desse tipo de espetáculo. Preferia “ ver correr o tempo e as coisas” (...) A vida fluminense vivia de óperas, corridas e pleito eleitoral. Segredou-me que hoje nosso querido Machado se sentiria melhor, em face de uma nova sociedade. O moço se sustentava em genialidade literária. Árdua luta, explica-me ela, pois atingira o oficialato de gabinete de ministro, era membro do Conservatório dramático, oficial da Ordem da Rosa e estava no auge de sua carreira como Diretor de um órgão público. Contudo em nada mudara. Pura simplicidade. Tudo levava a crer que ele iria mais longe... Confidenciou-me ainda, a velha senhora, que ele andava metido num movimento, não sabia ela de que, mas estava sempre acompanhado de outros senhores, alguns sisudos, outros falantes, circulando sempre pelos lados da Travessa do Ouvidor, na redação da Revista Brasileira e na Livraria Laemmert. Estava às voltas com amigos, livros e falatórios, muitos falatórios... Um molequinho, que fazia serviços para ela, disse que o ouviu falar em uma tal “ Academia”. Exatamente... “Academia”, mas não soube dizer mais nada...
O jornal “A Marmota Fluminense” abriu espaço para o incomparável escritor. Como você sabe, igual importância tem para mim “ O Imparcial” de Rio Pomba, do nosso amigo Francisco Vieira de Siqueira, que acolheu minhas crônicas. Gosta do que eu escrevo e abriu-me ao gosto dos leitores. Aliás, o Sr. Francisco já havia prometido apresentar-me aos amigos editores, quando viesse ao Rio. Machado, como eu, apreciava jornais: “a verdadeira forma da república do pensamento(...), a literatura comum, universalmente aceita”, afirmava.
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Chegando ao Petit Trianon, fui recebida por vários jornalistas. Assegurou-me o Sr. Adolfo, presidente da “Folha Dirigida, que, apesar de Machado ter saudades do Pedagogium, do Silogeu, encontrava-se “ radiante” com a nova sede e gostava de “visitá-la”, “ conhecê-la” bem, o que fazia com muita freqüência...
Senti-me feliz em entrar naquela casa... O coração estremeceu diante dos manuscritos daqueles admiráveis poetas, que tanto amo e, apressado, recolheu memórias de aulas de literatura, quando então ouvi falar deles. Sim, lá estavam os meus amigos a esperar-me, cansados, com uma saudade centenária, com românticos sorrisos, embora não estivessem acostumados a muitas visitas femininas. Ao contrário de serem desajeitados, mostraram-se muito gentis e hábeis em seus galanteios.
Fechei os olhos e, no meu sentir, lá estava ele, o fundador da Academia Brasileira de Letras, a sorrir para mim. E, embora eu soubesse que todo seu amor fosse por Carolina Novais, senti meu coração bater mais forte. Sei que “ vive e morre por Carolina...” Ele veio ao meu encontro, ladeado por Bilac, Inglês de Sousa e Artur Azevedo, todos alinhados em suas polainas, luvas e casacas, com seus bigodes impecáveis e seus cumprimentos discretos. Beijaram-me as mãos, fazendo discreta e clássica reverência... Sentamo-nos e falamos, falamos muito. Depois de longa conversa, risos e algumas poesias, que Machado declamou a meu pedido, Bilac lembrou-se de um compromisso. Despediu-se de todos escusando-se. Excepcionalmente não ficaria para o chá, mas deixou claro que leria minhas poesias e crônicas e, se eu desejasse, nos veríamos outra vez num café da Ouvidor.
Às cinco horas, pontualmente, ofereceram-me sequilhos, uma chávena bem aquecida de chá de laranja e canela, e uma variedade de salgados e doces. Experimentei alguns e comentei sobre a linda porcelana, a beleza da casa, a conversa agradável... Machado retribuiu os elogios e, ao final, se eu não me opusesse, me ofereceria um “calix” de licor. Apreciamos o chá em companhia dos outros escritores e muitos deles quiseram saber quem era aquela mulher que estava durante todo o tempo ao lado de Machado. Argüíram com os olhos e lábios se seria ela a tal “Helena” de que tanto se falava.


Machado, entre tantos assuntos, se queixou muito da falta de iluminação da cidade e do excesso de mosquitos... Penso que já estava a sentir os desconfortos do “uso imoderado dos olhos” e de lentes incorretas, do delicado “pince-nez”. O escritor, para atender às solicitações do ofício literário acumulado com o modelar burocrata vivia a “ vertigem ocular dos tempos presentes”. Sofria com os olhos, confidenciou... O Dr.Hilário de Gouveia tinha bastante trabalho. Miguel Couto, seu médico, cuidava do resto do corpo. Carolina, luz dos seus olhos, freqüentemente era vista na varanda do sobrado, no Catete, lendo e fazendo anotações, amorosamente, enquanto ele ditava. Enfim comentamos sobre nosso fascínio por jornais...


Machado saiu apressadadamente, tão logo a reunião terminou. Tinha ainda que visitar seu editor na Rua do Ouvidor, o Monsieur Garnier, que havia publicado seus “Contos Fluminenses”. Levava-lhe um livro novo. Desejava saber se estaria interessado em sua mais recente obra, o “ Dom Casmurro.” Depois disso precisava ir correndo lá para os lados do Largo da Carioca, onde o esperava sua doce Carolina. Deveria acompanhá-la no bonde, pois não gostava que andasse sozinha. Falou-me que ela fora experimentar um vestido novo em sua modista, e de lá passaria na Rua da Alfândega, para comprar um par de luvas e um novo chapéu. Iria presenteá-la, para que estivesse ainda mais bela, na grande recepção, no próximo sábado, em casa dos pais de um novo amigo seu, o jovem Alberto da Costa e Silva, rapaz inteligente que conhecera recentemente na chácara de Joaquim Nabuco. Afeiçoou-se a ele naquela ocasião, assim que trocaram algumas idéias, pois o jovenzinho estava muito interessado em estudar culturas africanas. Viu logo tratar-se de moço de futuro promissor. Cochichou-me o querido Machado de Assis, em segredo, que se o rapazola continuar assim tão dedicado às letras, acabará sendo Embaixador e, quiçá, Presidente da Academia Brasileira de Letras. Despedimo-nos prometendo um próximo encontro para o “ chá das cinco”. Afirmou-me ele, tão logo “voltasse” à Academia, iria apresentar-me o brilhante rapaz.


Partiu sozinho depois de beijar-me as mãos, delicadamente, sem perceber tristeza e lágrimas em meu rosto, correndo pela rua vazia, assobiando baixinho, na expectativa de tomar o bonde e ir ao encontro de sua amada.


Assim, caro amigo, narrei-lhe o ocorrido em “Casa de Machado”. Escreverei para o querido colunista Nicolau Alves, e a Carmen Marini, diretora de “O Imparcial”, para que publique o honroso convite.


Brevemente escreverei a Drummond.


Machado fez recomendações e elogios a todos.

                 Valéria Á. Cerqueira