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quarta-feira, 26 de outubro de 2011

A Devoção das Palavras

                                                   Intervenção na Imagem- Arte Digital por

                                                    Valéria A. Cerqueira



            Clarice, a poeta que vivia “Perto de um coração Selvagem” tinha uma Flor de Lis, cravada no peito, (Lispector) e a poesia à flor da pele; Clarice era possuída pelo “demônio de escrever”. Desnudou-se sem preconceito no livro A Descoberta do Mundo: “Eu disse certa vez que escrever é uma maldição. (...) mas uma maldição que salva. Salva a alma presa, salva o dia que se vive e que nunca se entende a menos que se escreva. Escrever é procurar entender, é procurar reproduzir o irreproduzível, é sentir até o último fim o sentimento que permaneceria apenas vago e sufocador. Escrever é também abençoar uma vida que não foi abençoada”.
            Nietzsche afirma: “De tudo que foi escrito, só gosto daquilo que é escrito com o próprio sangue. Escreve com sangue e aprenderás que sangue é espírito”.
            Assim, escrever com sangue é buscar com arrebatamento e voracidade na essência da alma a Verdade que nos liberta de todo sentimento. Escrever exige doação, entrega absoluta e muita flexibilidade. Espírito maleável, tão natural quanto a do galho que se verga ao vento, ou da água que contorna as pedras do oceano. É justamente na flexibilidade de ideias, conceitos e pré conceitos, que podemos extrapolar nossas palavras através da arte, realizando o milagre da transfiguração do sangue em signo, símbolo maior da própria Vida.
            Não é importante explicar ou definir poesia, porque isto limita o seu processo criativo. Criar é ver na parede vazia e transmutar janela, quadro, cadeira, candelabro sob as águas da imaginação, sob a luz inebriante do mistério, do novo sentido. Não há que definir como foram parar no espaço. Saiba o bastante: que a poesia existe para amansar as feras, dominar-lhe as garras e os dentes e fazer companhia para qualquer solidão... a sua ou a que não é sua... Quando pronta, as palavras encantatórias fazem companhia aos outros.
            
            Embora em sua gênese a língua seja oral, a palavra escrita, costuma usurpar-lhe o primeiro papel, fato salientado por  linguistas como Saussure, Meillet, Hjelmslev, o que foi objeto de Fetichismo de la Letra do linguista filólogo Rosenblat. O espírito passou a corporificar-se na letra. Se nos primórdios o terrível destino (fatum) era o que estava dito, há muito, a fatalidade é para o homem “o que está escrito” Maktub! Estava escrito! Dizem os árabes.
            Ao lado da devoção da palavra, a Antiguidade conheceu o culto do silêncio, com os seus deuses Hórus, no Egito; Harpócrates, na Grécia. Silêncio e palavra... A palavra é o instrumento do escritor; fórmula de magia e de encantamento. Pela palavra fomos criados, pois Deus formou o mundo com o seu poderoso Verbo. Faça-se a luz!... Faça-se o homem!... (Gênesis)
            “Com a palavra criaram-se e destruíram-se mundos, selaram-se destinos, elaboraram-se  ideologias, proferiram-se maldições e blasfêmias, expressaram-se ódios... Mas com ela, e só com ela, em tantos e desvairados povos, falou-se de amor, consolaram-se as aflições e elevaram-se as preces a Deus” (...) “A palavra é um gesto e a sua significação um mundo” disse Merleau-Ponty. Como a “Estrela da Manhã” de Manuel Bandeira, ela poderá apresentar-se aos nossos olhos... Pura ou degradada...”(Celso Cunha in Sob a Pele das Palavras). A divindade da palavra é um fato universal”.
            A poesia é! É verbo...É criação. É tudo, é isto, é aquilo, é nada, é muito, é o suficiente, é aprendizado, é ensinamento, é vida, é morte, é súplica, é conselho, é oração, é delírio, é lucidez, é insânia, é alegria, é dor, queda e exaltação... É a deusa dominadora do poder mágico do verbo humano. A palavra edifica, a palavra abate e aniquila.
            Estamos sempre a esperar, no silêncio,  a grande musa e os seus sortilégios, para que jorrem palavras em nossas mentes; No Egito havia a divindade Ísis, (correspondente a Deméter na Grécia). Uma inscrição encantatória declara: “Eu sou Ísís, a deusa, a senhora das palavras de potência... as palavras cujas vozes são Magia.”  
            Abençoados Poetas!... 

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Perguntaram-me como era escrever.
Disse que não sabia,
Apenas fazia.
Era assim como espremer
O cérebro, o coração,
Até sair sangue...
De onde escorre a alma, a luz
De uma exótica partitura.
São sons, são sentimentos.
Não adianta explicar,
Há que fazer.
Recolher as emoções todas num copo,
Como quem pega
Água para beber.

     Valéria Á. Cerqueira - 
Em: Sentimento Disponível
      
            *Dia do Poeta- 20 de outubro